No início da década de 1970, a ideia da Marvel era adquirir os direitos da clássica série “Kung Fu”, estrelada por David Carradine, e levá-la para os quadrinhos. A ideia não deu certo. "Kung Fu" era produzida pela Warner, proprietária da DC Comics, rival histórica da Marvel. Para aproveitar a onda de artes marciais, a Casa das Ideias adquiriu os direitos de “Fu Manchu”, vilão criado por Sax Rohmer, e criou Shang-Chi, um filho perdido do personagem. Fu Manchu se foi com a perda dos direitos de exploração do personagem, mas o filho criado e alimentado pela Marvel ficou.
Ao longo de quase cinco décadas, o personagem integrou o MI6 (serviço secreto britânico), os Vingadores Secretos comandados por Steve Rogers (que na época não era mais o Capitão América), e até integrou os Vingadores na fase Nova Marvel. Shang-Chi também passou por outras equipes, ganhou versões em universos alternativos e agora se torna oficialmente um produto do Universo Cinematográfico Marvel com a estreia de “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Aneis”, em cartaz nos cinemas.
O filme dirigido por Destin Daniel Cretton (“Luta por Justiça”) é um grande acerto para esse início de fase 4 do MCU - mesmo tendo sido o pontapé inicial oficial, “Viúva Negra” é uma história antiga e não coloca o universo Marvel novamente em movimento. “Shang-Chi” não é um filme-evento como será “Homem-Aranha: Sem Volta Pra Casa”, e é justamente por isso que funciona.
“Shang-Chi” é um filme de origem e uma história sobre identidade. Após uma breve introdução à lenda dos dez anéis e aos pais do protagonista, somos levados a San Francisco para conhecer nosso herói. A vida heroica que Shang-Chi (Simu Liu) leva, porém, é a de milhares de imigrantes nos EUA, com um emprego de manobrista ao lado de Katy (Awkwafina) e uma vida sem grandes planos. A família de Katy e os amigos da dupla perguntam “quando irão se casar?”, “até quando viverão nesses empregos?”, resumindo, “quando crescerão?”.
Tudo muda quando Shang-Chi é atacado em um ônibus por Razor Fist (Florian Muntean) e a luta entre eles viraliza - de repente todo mundo conhece “o cara do ônibus”. É o passado, a herança familiar, voltando para perseguir o protagonista. Ele parte então para Macau para reencontrar a irmã, Xialing (Meng’er Zhang), que abandonou quando fugiu do domínio do pai, Wenwu (Tony Chiu-Wai Leung), o milenar guardião dos dez anéis e um sujeito amargurado pela morte da esposa.
A mudança de cenário do filme para a China marca o conflito cultural do personagem, o mesmo vivido por milhões de imigrantes mundo afora que se dividem entre seguir a cultura familiar ou abraçar sua nova casa. Shang-Li tem que se acertar com a irmã, se reconectar com a memória da mãe e finalmente enfrentar seu pai. “Shang-Li”, o filme, é uma jornada de descobertas.
Conhecido por dramas independentes, Destin Daniel Cretton acerta a mão no tom do filme. “Shang-Li” tem vários diálogos em mandarim, protagonistas asiáticos e aproveita a rica produção asiática de filmes de artes marciais. Aliás, é interessante como o texto trata as artes como uma questão não apenas de agilidade ou força física, mas também de força mental e autoconhecimento. Algumas coreografias são filmadas quase como elegantes balés, destaque para a que abre o filme, entre Wenwu e Xiang Li (Fala Chen), um magnífico mix de encanto, força e sensualidade. Essa dualidade de estilos funciona, inclusive, para mostrar os dois lados de Shang-Chi e os caminhos que ele pode escolher seguir.
Outro ponto forte do filme é a química entre Simu Liu e Awkwafina. O roteiro faz a escolha de já apresentá-los como uma dupla inseparável e com uma dinâmica particular. Assim, o público não demora a comprar a força da amizade entre eles. Simu Liu atua com segurança, como quem carrega um fardo, mas também consegue se divertir. Já Awkwafina é ótima ao levar o espectador para dentro da tela; é ela a novidade naquele mundo, é quem pela primeira se vê diante de lendas chinesas, de um mundo mágico e de desafios para os quais não está preparada, mas que está disposta a enfrentar em nome de sua amizade.
“Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” tem as melhores sequências de luta do Universo Marvel, o que faz todo sentido. Qualquer desconfiança possível pela atrocidade que a é a série “Punho de Ferro”, da Netflix, é esquecido logo na sequência inicial. As já citadas coreografias são ótimas e a edição entende o momento de desacelerar para causar impacto ou quando um take longo é necessário - uma luta nunca é igual à outra.
As inspirações vêm de lugares distintos, mas basicamente do cinema asiático, de obras como “O Tigre e o Dragão” (2000), “O Clã das Adagas Voadoras” (2004), “O Grande Mestre” (2008) e até mesmo “Kung-Fusão” (2004). Surpreende, assim, que o embate final perca tanto a identidade conquistada pelo filme e se aproxime aos clímax da DC, abusando de tela verde e conferindo ao longa um aspecto genérico não visto antes do clímax. Como as filmagens foram interrompidas pela pandemia, a tela verde talvez seja utilizada além do necessário.
O filme tem em Wenwu um vilão de camadas, um sujeito complexo que não é necessariamente mau, pelo contrário, é um cara que já havia encontrado a sua redenção ao abandonar os anéis e a violência. O problema é que a violência é cíclica e difícil de ser definitivamente abandonada. Wenwu é um personagem trágico e com motivações que o colocam no limite da sanidade ao enfrentar os filhos em um ato desesperado de recuperar o amor de sua vida.
Outro grande mérito de “Shang-Chi” é funcionar bem como um filme independente, ou seja, ele não exige que o público tenha assistido a todos outros filmes e séries do Universo Marvel. Não se engane, ele se conecta diretamente ao MCU com diversas referências e até com personagens (há duas cenas pós-créditos), mas sua essência não depende disso.
“Shang-Li e a Lenda dos Dez Anéis” oferece um respiro ao fãs da Marvel ao buscar referências diferentes, mas é também um filme seguro e confortável com um grande espetáculo visual. O longa de Destin Daniel Cretton é uma clássica jornada do herói e uma história sobre reencontrar a essência perdida; é também uma divertida obra de artes marciais em um mundo cheio de magia e fantasia, mas com um texto capaz de trazer o espectador para mais perto e até relacionar os dilemas do herói em tela com os seus próprios.
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