Gregory David Roberts tem uma história de vida quase inacreditável. No final dos anos 1970, após se divorciar e perder a guarda da filha, se viciou em heroína e cometeu assaltos para sustentar o vício. Acabou em uma prisão de segurança máxima da qual fugiu pela porta da frente em 1980 para se tornar o criminoso mais procurado da Austrália. Em fuga, foi para Mumbai (então Bombaim), na Índia, e se instalou em uma favela em que criou um posto gratuito de saúde, mas também trabalhou como falsificador, traficante de armas e soldado da máfia local. Foi preso na Alemanha e extraditado para seu país natal, onde acabou passando dois anos na solitária. Na prisão, escreveu sua história (de forma bem romantizada) em “Shantaram” três vezes - as duas primeiras foram destruídas pelos guardas; o livro de quase 1000 páginas foi lançado em 2003 e se tornou um grande best-seller internacional.
Ao longo dos anos, a adaptação de “Shantaram” foi um projeto em desenvolvimento na indústria de cinema. Russel Crowe demonstrou interesse no projeto, mas foi Johnny Depp quem se tornou obcecado por ele e fez a Warner pagar US$ 2 milhões por um roteiro escrito pelo próprio Gregory David Roberts e manter os direitos cinematográficos da obra até 2015. A justificativa foi de que a greve dos roteiristas em 2007 prejudicou o andamento, mas a verdade é que o filme de “Shantaram” nunca chegou nem perto de sair do papel, apesar dos diversos projetos. Com grandes produtoras mergulhando de cabeça nas séries, era quase inevitável que o livro virasse uma narrativa seriada, o que até combina melhor com a grandiosidade da obra.
“Shantaram” chega à AppleTV+ estrelada por Charlie Hunnam e com todas as qualidades e os defeitos do livro. Hunnam é Dale Conti, um paramédico estudante de filosofia australiano que acaba preso após um problema com drogas e armas. Acusado de ser um delator e com a vida em risco, Dale consegue um novo passaporte com o nome de Lindsay Ford e foge para a Índia, criando vínculos em Bombaim. Já conhecido como Lin, ele se torna amigo do guia turístico Prahbu (Shunham Saraf) e forma uma rede de aliados como Didier (Vincent Perez), a viciada Lisa (Elektra Kilbey) e a misteriosa Karla (Antonia Desplat), seu interesse romântico. Enquanto isso, na Austrália, um detetive (David Fields Nightingale) faz das tripas coração para levar Dale de volta às mãos da justiça do país.
“Shantaram” é uma bagunça, com muita informação e tramas paralelas nunca desenvolvidas, mas, ainda assim, é uma série interessante. Apesar da longa duração da temporada, ela abrange apenas parte do livro; em seus 12 episódios, a série constrói, a seu modo, a tensão de Lin acerca de seu passado e da justiça de seu país. O texto faz questão, a todo momento, de mostrar o personagem como alguém que cometeu erros, mas também como um sujeito que valoriza a honra acima de tudo.
Se torna até repetitivo que a série tenha diversos mini-arcos de redenção que, sem perceber, acabam criando um festival de arcos “white savior”, ou seja, quando um branco, normalmente estrangeiro, novo no ambiente e na cultura, chega para salvar/ensinar às pessoas nativas, sejam elas negras, indígenas, latinas ou até alienígenas azuis (“Avatar”).
É também irônico como uma obra sobre um homem em fuga, alguém que deveria ficar escondido, tem na capacidade de seu protagonista chamar a atenção sua força motriz. Charlie Hunnam obviamente chamaria a atenção em qualquer lugar, mas, mesmo em uma cidade gigante como Bombaim, é impossível para ele passar despercebido. O ator, famoso por “Sons of Anarchy” tem o necessário para o papel e mistura sua imposição física à inteligência e ao carisma de Lin. O ator, britânico de Newcastle (um dos sotaques mais fortes da Inglaterra), sofre com o sotaque australiano, mas, em um grupo de personagens de origens distintas e não-reveladas, acaba não comprometendo e até reforçando o aspecto multi-cultural da narrativa.
“Shantaram” é grandiosa, filmada em locações e captando bem o caos de Bombaim. A série, porém, tem problemas de foco (Lin se torna quase coadjuvante a partir de certo ponto), sofre com a narração em off (super expositiva), com a questão do “white savior” e com personagens coadjuvantes pouco interessantes, mas, ainda assim, a série da AppleTV+ é uma boa opção com um estilo de texto pouco aproveitado nos últimos anos.
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