Nos últimos 40 anos, ninguém na indústria misturou tão bem o terror à fantasia e ao entretenimento quanto Tim Burton. Do clássico “Os Fantasmas se Divertem” (1988), passando por “Edward Mãos de Tesoura” (1990) até chegar a blockbusters como “Alice no País das Maravilhas” (2010), o cineasta criou uma assinatura pop e macabra que tornava as fantasias assustadoras e o terror, fantasioso. É pela trajetória de Burton que é impossível se empolgar com “Wandinha”, série produzida por ele para a Netflix sobre a filha adolescente da Família Addams.
Criada por Charles Addams em 1938, no formato de tiras de quadrinhos, a Família Addams foi de fato apropriada pela cultura pop a partir de 1964, com uma série de televisão, e se manteve desde então no imaginário popular, com filmes, animações, séries e até um musical com versões mundo afora. A assustadora família, uma sátira das idealizadas famílias aristocratas americanas do início do século passado, sempre foi um prato cheio para Tim Burton, que finalmente coloca as mãos no material não em uma adaptação, um reboot ou uma sequência, mas em uma obra original.
Em oito episódios que chegam à plataforma na quarta (23) “Wandinha” é obviamente centrada na personagem-título, mas é também um novo olhar para todos os Addams. A série tem início em um colégio comum, como outros tantos que já vimos na dramaturgia estadunidense, e mostra Wandinha (Jenna Ortega) como uma excluída em meio aos jovens coloridos em busca de popularidade. Após seu irmão, Feioso (Isaac Ordonez), sofrer bullying, Wandinha resolve se vingar e acaba expulsa da escola. A solução da família é matriculá-la no internato de Nunca Mais, um colégio para “excluídos” onde Mortícia (Catherine Zeta-Jones) e Gomez Addams (Luis Guzmán) estudaram quando jovens.
Nunca Mais, claro, também tem suas estruturas, suas castas - lobisomens, vampiros, sereias - e seus dramas adolescentes que são muito bem explorados pela série nos primeiros quatro episódios. É estabelecendo o universo, suas regras e seus perigos que “Wandinha” constrói sua força e seu encanto. Wandinha tem dramas típicos da adolescência, mas não é uma adolescente comum; essa sensação de não pertencimento está em todas as metáforas e mensagens da série, que cria sua dicotomia entre o ser único e o pertencer a algo maior, uma comunidade de diferentes.
A primeira temporada é bem definida em dois arcos de quatro episódios. Mesmo que introduza o arco principal, a primeira metade serve para nos ambientar àquele mundo e desenvolver as relações da protagonista com outros personagens, como a diretora Weems (Gwendoline Christie), sua colega de quarto, Enid (Emma Myers, ótima), e os bonitões Xavier (Percy Hynes White) e Tyler (Hunter Doohan), com quem Wandinha forma uma espécie de triângulo amoroso. Em um primeiro momento, a série caminha com boa cadência, sem nunca se atropelar, e com episódios bem construídos, mas isso muda quando a trama ganha ares definitivamente detetivescos quase genéricos nos episódios finais.
“Wandinha”, é bom ressaltar, é uma série adolescente com pegada bem similar à de “Riverdale” ou “O Mundo Sombrio de Sabrina”, ambas disponíveis na Netflix e claramente uma referência. O roteiro é falho na construção de alguns personagens coadjuvantes importantes para a trama e também em manter o mistério até o final. Quando abraça o arco de detetive juvenil, a série se aproxima demais de um episódio de “Scooby-Doo”, por exemplo, com soluções imediatas e algumas trapaças típicas do gênero. Com a necessidade de não ser previsível, o roteiro cria pistas e viradas muito artificiais e a sensação de que elas estão ali apenas para enganar o espectador é inevitável.
Mesmo em seus momentos menos interessantes, “Wandinha” é um espetáculo sensorial. A fotografia de David Lanzenberg e Stephan Pehrsson é macabra, com pegada gótica e reforçando o sentimento de que a protagonista é única - os ambientes iluminados, vivos e coloridos contrastam com as roupas escuras da personagem. A música, a cargo de Chris Bacon e Danny Elfman (parceiro habitual de Burton), dá uma grandiosidade e um tom de mistério à história.
Ainda, Jenna Ortega é um espetáculo como Wandinha Addams. A atriz cria uma personagem assustadora e sinistra com naturalidade e um olhar (às vezes quase quebrando a quarta parede) que dá calafrios. A Wandinha da Netflix é bem diferente daquela que vimos em outros meios, pois, mesmo apática e com ares de uma serial killer, a personagem é ativa, ágil e bem boa de briga. As sequências de ação protagonizadas por ela, mesmo que não sejam muitas, são sempre boas e com boas coreografias.
Wandinha é uma personagem complexa, cheia de camadas e dúvidas, e o texto não se preocupa em explicar demais os Addams, o que é ótimo. Alguns problemas de roteiro, como soluções “mágicas” e o péssimo desenvolvimento de alguns personagens, impedem “Wandinha” de ser ainda melhor, mas, ainda assim, a série é sempre divertida e sinistra, com boas doses de terror e fantasia inseridas no universo adolescente.
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