Uma das experiências recentes mais interessantes que tive no cinema foi ao assistir a “Um Lugar Silencioso” (2018), de John Krasinski, em uma sala lotada. Em determinados momentos do filme, o silêncio era tão absoluto que havia um constrangimento até mesmo no barulho de mastigar pipoca. Com uma pegada completamente diferente, mas também tendo o silêncio como protagonista, “Sound of Metal” (“O Som do Silêncio”) é um dos filmes mais legais de 2020. Aqui peço permissão para manter o título original do filme no texto, algo que nunca faço, mas que acredito ser essencial na compreensão deste filme.
Lançado pelo Amazon Prime Video no início do mês, o filme dirigido por Darius Marder acompanha um recorte da vida de Ruben (Riz Ahmed), o baterista de um projeto punk/metal/noise que, em meio a uma turnê e sem muitos sintomas prévios, perde a audição. Ex-viciado que encontrou na música ao lado da namorada, Lou (Olivia Cooke), uma salvação, Ruben se vê impossibilitado de tocar. O que será dele sem a música, sem ouvir?
“Sound of Metal” é bem menos melodramático do que aparenta ou poderia ser. O roteiro, escrito por Darius Marder e pelo irmão Abraham a partir de uma premissa de documentário de Derek Cianfrance sobre um baterista de metal que estoura os tímpanos, é delicado e se sustenta sobre dois pilares: Riz Ahmed e o silêncio.
O filme brinca com os sentidos, nos fazendo ouvir o que Ruben ouve naqueles instantes. Com ótimas edição e mixagem de som, “Sound of Metal” é uma experiência sensorial. O título original do filme, ainda, ganha novos significados com o desenrolar da trama: o que seria o metal do título? A música, a reverberação do alumínio que possibilita surdos “ouvirem” ou o som metalizado oferecido por implantes cocleares?
Quase sempre contido, mas boa parte do tempo no limite de explodir, Riz Ahmed entrega uma atuação impecável - é tocante acompanhar a transformação de Ruben mesmo quando o texto não recorre a saídas fáceis. O ator se mostra vulnerável, o que desperta a empatia do público, mas o personagem nunca se vitimiza, pelo contrário, Ruben é quase sempre proativo e toma a frente do que pretende.
Mesmo com pouco tempo de tela, Olivia Cooke também se sai muito bem tanto em um primeiro momento, quando exige que Ruben procure ajuda, quanto no ato final, com poucas palavras, mas com uma emoção corporal enorme. Neste momento, também, é bonito perceber como Ruben percebe que a namorada não se prendeu a um passado, se transformou, uma compreensão que tem grande importância para a conclusão da trama.
É interessante notar que, a princípio, a caracterização do músico com um ex-viciado parece gratuita, mas tudo muda de figura em um diálogo no terceiro ato. Na comunidade para deficientes auditivos, ele reencontra sua paz, reaprende a enxergar o mundo, faz novos amigos, mas ainda se comporta como um viciado… Escutar seria um vício, a vida como conhecemos é um vício?
“Sound of Metal” ainda entra em uma discussão sobre a necessidade e a possibilidade de correção de uma surdez - deve-se aceitá-la como uma característica inerente à pessoa ou buscar qualquer solução disponível? De forma não tão sutil, o filme faz sua escolha, mas talvez ela seja muito mais particular de Ruben do que um simples certo ou errado. Ruben quer sua vida de volta, que voltar a tocar, fazer turnês; a música foi o que o salvou, então o que será dele sem ela?
Este texto, como se pode perceber, levanta questões - e o faz justamente porque “Sound of Metal” levanta questões sobre nossos hábitos, nossos comportamentos. O filme não questiona escolhas passadas, mas o faz com as decisões acerca do futuro. Ao fim, é um belíssimo e pouco confortável drama que desperta empatia brincando com nossos sentidos. Para completar, Riz Ahmed entrega uma atuação de Oscar, contido, expressivo, incorporando, no olhar e na expressão corporal, a jornada sensorial na qual o espectador o acompanha.
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