O início do Millarworld, universo baseado nos personagens criados por Mark Millar, na Netflix foi um desastre. “O Legado de Júpiter”, que seria a entrada definitiva da plataforma de streaming no mundo de heróis, não é ruim, mas teve produção problemática com estouro de orçamento, atrasos, abandono do showrunner Steven DeKnight. Ao melhor estilo Netflix, não demorou nada para ela ser cancelada. O contrato de cerca de R$ 200 milhões para desenvolver conteúdos baseado na obra do quadrinista, no entanto, continua ativo.
Sem nenhum alarde, talvez justamente para não criar novamente expectativas, “Super Crooks”, segundo projeto da Millarworld para a Netflix, chegou ao serviço de streaming na última semana. Baseada na HQ de Millar e Leinil Francis Yu, a série é dirigida por Motonobu Hori, animador que trabalhou em filmes como “A Viagem de Chihiro”, e tem roteiro de Dai Satô (“Cowboy Bebop”, o anime) e Tsukasa Kondo. Com 13 episódios de 20 minutos cada, a série é uma surpreendentemente ótima trama de assalto protagonizada por vilões.
“Super Crooks” inicialmente acompanha Johnny Storm, da descoberta de seus poderes, na adolescência, passando pela saída da prisão até chegar ao desejo de todo grande golpista: um último golpe que permita que ele deixe essa arriscada vida. Sim, a vida dos vilões no universo da série é complicada, pois o texto é situadono mesmo mundo de “O Legado de Júpiter”, o que significa que a União da Justiça e todos aqueles personagens da finada série existem para combater o crime.
Após um arco inicial agitadíssimo (o terceiro episódio não dá nem tempo para o espectador respirar) apresentando Johnny e sua namorada, Kasey, “Super Crooks” dá uma desacelerada e se aproxima da narrativa de uma trama de assalto - um “Onze Homens e um Segredo” com ladrões superpoderosos. O texto apresenta novos personagens, cada um com seus poderes, e também coloca em movimento um ousado e inesperado plano.
“Super Crooks” se passa nos EUA, mas é uma animação japonesa, com estilo de texto japonês e áudio original em japonês. A animação é mais lisa e fluida do que as japonesas clássicas, conferindo um estilo misturando influências ocidentais e orientais. A série cria um universo colorido e cheio de vida no qual todos os absurdos são possíveis (todos mesmo). Não tendo lido a HQ, a série me ofereceu surpresas interessantes na utilização dos poderes e na violência estilizada da narrativa - é uma animação adulta de estilo não muito diferente da ótima “Invencível”, da Amazon Prime Video.
O roteiro nos faz torcer pelos vilões, personagens muito mais carismáticos, humanos e interessantes do que os imaculados cidadãos de bem representados pela União da Justiça. Eles são os azarões, quase representantes do povo nesse universo, criando uma dinâmica quase de luta de classes. “Um bando de vilões tapados não ganharia dos super-heróis”, diz um personagem em um momento de frustração pela difícil mobilidade social - os vilões nada mais são do que poderosos que não conseguiram se tornar heróis, como fica claro no primeiro episódio.
Toda a reunião do grupo e as preparações para o plano final funcionam muito bem em uma construção surpreendentemente sem o didatismo das tramas do estilo; a exposição está ali, explicando uma ou outra virada até como parte do estilo do anime, mas ela nunca incomoda.
Com mais episódios do que o habitual para uma temporada de série da Netflix, mas com narrativa sempre enxuta e em movimento, a série não para nunca no mesmo lugar. É curioso como os 13 episódios curtos oferecem alguns clímax durante a temporada, abrindo e fechando arcos, cada um deles com desafios e conflitos próprios para Johnny, Kasey e a trupe de vilões protagonistas.
“Super Crooks”, assim como “Invencível”, mostra que a animação talvez seja a melhor saída para as adaptações de violentas histórias em quadrinhos, principalmente quando não se tem orçamentos dos filmes da Marvel ou da DC - as próprias séries de ambos universos têm alguns problemas nesse sentido. A animação torna possível recriar os absurdos dos textos de Mark Millar (são muitos, nem sempre bons) e até nos faz questionar se não seria melhor ter visto “O Legado de Júpiter” em uma versão animada.
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