Um vírus dizimando a população, a sociedade se desestruturando, os sobreviventes se reorganizando às suas maneiras para criar um novo mundo. Sim, já vimos isso antes diversas vezes em séries e filmes como “The Walking Dead”, “Tribes of Europa”, “Daybreak”, “Mad Max”, “A Estrada”, “Jogos Vorazes”... A lista é imensa. Como, então, trazer frescor para a trama?
Lançada em 2009 pela DC Comics/Vertigo, “Sweet Tooth”, de Jeff Lemire, oferece uma possibilidade. No mundo da HQ, simultaneamente ao surgimento do vírus, nasceram várias crianças híbridas, meio humanas, meio animais. O vírus criou os híbridos ou os híbridos criaram o vírus? Pouco importa para uma sociedade que passa a temê-los e persegui-los.
Transformada em série pela Netflix (estreia dia 4), “Sweet Tooth” conta a história pelo olhar de Gus (Christian Convery), uma criança híbrida criada pelo pai, Richard (Will Forte), isolada na floresta e longe dos olhares da civilização. Após anos vivendo conforme as regras criadas pelo pai, Gus quebra a principal delas: nunca ultrapasse a cerca. Gus, um híbrido de cervo, logo descobre que sua espécie é temida e caçada, mas mesmo assim resolve ir atrás de sua mãe.
O caminho de Gus se cruza com o de Tommy “Grandão” Jepperd (Nonso Anozie) e eles logo se tornam companheiros de viagem, mais por insistência do jovem do que pela boa vontade do solitário viajante. A jornada, claro, não será fácil e outros personagens entrarão no caminho, para o bem e para o mal.
A série também tem arcos próprios para o Dr. Singh (Adeel Akhtar) e sua esposa, Rani (Aliza Vellani), que começa a apresentar os sintomas do Flagelo, a doença que dizimou o mundo no Grande Colapso, e para Aimee (Dania Ramirez), uma terapeuta que encontrou um sentido na vida após o colapso. É fácil perceber que todas as histórias vão se encontrar em algum momento, mas tudo acontece de maneira natural.
“Sweet Tooth” é uma aventura em um mundo destruído e de pouca esperança, mas é uma história contada sob o ponto de vista de uma criança de 10 anos que nunca viu nada muito além da cabana em que cresceu. Por isso, a série, em seus oito episódios, ganha um ar fantasioso meio Steven Spielberg, sempre uma boa referência. A narração reforça esse aspecto, de uma história nos sendo contada, e ainda faz lembrar o estilo do material original.
Muito da HQ é alterado para fins narrativos em “Sweet Tooth” - alguns arcos são retirados (pelo menos da primeira temporada) e boa parte da ação dá lugar a desenvolvimento de personagens e suas relações, o que é ótimo para fins dramáticos. Richard e Grandão também têm características bem diferentes das da HQ. No texto de Lemire, o pai de Gus é um religioso fervoroso e não muito carismático, o que é alterado na série da Netflix.
O Richard de Will Forte é um cara divertido e afetuoso, um sujeito que escreve livros para seu filho com o que lembra de cabeça de grandes clássicos da literatura. Grandão também é bem diferente de sua versão da HQ. Mesmo ainda sisudo e intimidador, ele ganha carisma e perde o gosto pela violência que demonstra no material original, além de conferir um tom de humor às reclamações que faz com Gus - é ele, inclusive, que dá à criança o apelido de Bico Doce (“Sweet Tooth”). Outros personagens surgem de maneira diferente, como Ursa (Stefania LaVie Owen) e Wendy (Naledi Murray), mas tudo casa muito bem com o tom fantasioso da série.
Após o primeiro episódio mais focado na relação de Gus e Richard, “Sweet Tooth” dedica tempo a seus outros arcos. Dr. Singh, vivendo numa comunidade organizada nos subúrbios, ganha destaque e de cara entendemos seus dilemas: até onde ele está disposto a ir para salvar a vida de sua esposa? Já o arco de Aimee demora um pouco para engrenar, mas o faz de maneira adorável com a chegada de Wendy.
O mundo de “Sweet Tooth” é cruel, mas se torna leve com as descobertas de Gus a sequência em que ele ouve música pela primeira vez é ótima. O tom de terra arrasada daquele mundo contrasta com a grandiosidade dos cenários naturais da série filmada na Nova Zelândia. Há até algo de “O Senhor dos Anéis” na ambientação. Exceção feita a alguns poucos usos exagerados de efeitos de CGI e tela verde (boa parte da série foi filmada durante a pandemia), “Sweet Tooth” é um espetáculo visual. A título de curiosidade, a série é produzida por Robert Downey Jr. e sua esposa, Susan Downey.
“Sweet Tooth” é um grande acerto da Netflix, uma série que consegue misturar a leveza e o encantamento de uma criança à dureza de uma sociedade pós-apocalíptica. É difícil imaginar o quanto o roteiro pode ter sido modificado para o mundo pós-pandemia, mas é quase certo que algumas escolhas seriam diferentes hoje. Jim Mickle, diretor de alguns episódios e criador da série explica, no material promocional, que apenas o piloto havia sido gravado antes de março de 2020, ou seja, quando a pandemia estourou, “Sweet Tooth” estava sendo roteirizada.
Talvez seja isso que tenha amenizada um pouco a crueldade da HQ de Jeff Lemire (que é ótima), ou talvez não. Pouco importa. A primeira temporada de “Sweet Tooth” é uma jornada adorável, cheia de aventura e humor, com um protagonista ótimo e um texto encantador.
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