No ótimo livro “O Cordeiro”, o escritor Christopher Moore cria, de forma bem-humorada, as histórias de Jesus Cristo dos seis aos 30 anos. O texto é ótimo - engraçado, sutil e narrado por Biff, o “brother” de infância de Jesus, que mostra como o amigo teve contato com diferentes classes sociais e religiões para criar a filosofia que mais tarde transmitiria a seus seguidores. Moore usa referências de Neil Gaiman e Douglas Adams para uma obra inteligente e provocadora, um livro que questiona sem ofender.
“Te Prego Lá Fora”, especial de Natal do Porta dos Fundos de 2021, chegou nesta quarta (15) ao Paramount+, tem premissa parecida. Em pouco menos de 30 minutos, a animação é um pequeno recorte de um Jesus adolescente (Rafael Portugal) chegando à nova escola ao lado do amigo Lázaro (Fábio de Luca). Jesus tem espinhas no rosto, um patch de Moisés (estilizado como a banda Metallica) na mochila e não sabe como lidar com mulheres, um típico nerd das comédias oitentistas.
O problema é que os romanos estão procurando o tal Messias e ficaram sabendo que ele frequenta aquela escola. Jesus, então, tem que esconder sua bondade e passa a se comportar como um bad boy. Jesus então se transforma num valentão e se torna parceiro de balada de Barrabás (João Vicente) em uma jornada de drogas, sexo e profanação.
Apesar da mesma ideia, o livro de Moore e o especial do Porta dos Fundos são produtos bem diferentes. Ao contrário do especial do ano passado, “Teocracia em Vertigem”, que tinha texto mais refinado no formato mockumentário, “Te Prego Lá Fora” é uma grande e escrachada piada nem sempre de bom gosto.
Ao optar pela animação este ano, o Porta se distancia dos especiais anteriores e aposta em uma nova linguagem. O resultado é variado - há momentos extremamente caricatos, e essa provavelmente era a intenção, que fazem rir quase por constrangimento, como as repetidas piadas com leprosos, por exemplo. Em contrapartida, há algumas sutilezas quase imperceptíveis no texto que aborda fake news, moralismo religioso e a violência do Antigo Testamento - “isso é culpa tua, que fica matando gente o tempo todo na sua biografia”, diz Maria (Thati Lopes, ótima) a Deus (Estevam Nobote) após o comportamento violento do filho.
O Deus de “Te Prego Lá Fora” é a versão caricata do Deus do Antigo Testamento, uma entidade que manda enforcar, saquear e fazer sacrifícios humanos - tudo potencializado, na animação, com um comportamento hedonista. Da mesma forma, a sociedade do especial de Natal é construída da mesma forma, tratando tais temas com normalidade. Esse retrato obviamente vai incomodar religiosos que se arriscarem a ver o filme, seja na esperança de se divertir ou apenas com o intuito de criticar depois.
Da clássica comédia colegial oitentista “Te Pego Lá Fora” (1987), o especial do Porta dos Fundos pega apenas o tema colegial e o título, uma forma clara de provocação. O resultado de “Te Prego Lá Fora” é quase uma esquete do grupo com narrativa e absurdos amplificados pelas possibilidades das técnicas de animação. O roteiro é violento e proporciona um estilo de animação adulta, cheio de piadas non-sense e situações nem sempre engraçadas. A ideia, como sempre, é usar o humor para potencializar absurdos sociais. Às vezes é ótimo, como em “Teocracia em Vertigem”, às vezes é apenas razoável, como no especial deste ano, mas o Porta dos Fundos consegue variar estilos e narrativas sem perder sua identidade e ainda se manter relevante.
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