Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

Tensa e divertida, "Treta" é uma das melhores séries da Netflix

"Treta" tem início com uma discussão no trânsito e ganha dimensões absurdas. Com narrativa ágil e leve, série tira espectador e personagens do conforto

Vitória
Publicado em 06/04/2023 às 00h37
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Ali Wong e Steven Yrun na série "Treta", da Netflix. Crédito: ANDREW COOPER/NETFLIX

Quando “Treta” tem início, é impossível prever aonde a minissérie da Netflix vai chegar, e isso provavelmente é o que a torna tão especial. Produzida pela queridinha A24 (“Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, “Aftersun”, “Pearl”, entre outros), a série lançada nesta quinta (06) começa simples, com uma briga no trânsito, algo normal nas grandes cidades, mas se desenvolve de maneira inesperada em uma escalada de violência e absurdos que divertem e despertam reflexões.

Tudo tem início quando Danny (Steven Yeun) e Amy (Ali Wong) se desentendem em um estacionamento. Nenhum dos dois está tendo um bom dia e ambos reagem de maneira desmedida, dando início a uma perseguição pelas ruas de Los Angeles. A série não os coloca em confronto imediatamente após essa introdução, e talvez esse seja seu grande acerto.

Criada por Lee Sung Jin, “Treta” desenvolve seus protagonistas ao ponto de nos fazer entender seus atos. Danny tem ascendência coreana, trabalha como um faz-tudo, sustenta o irmão mais novo que vive de fazer investimentos em criptomoedas e sonha em levar os pais para os EUA. Já a sino-americana Amy é uma empresária bem-sucedida, mãe de uma bela menina e casada com o filho de um grande artista plástico japonês.

A dualidade entre Danny e Amy representa os diferentes aspectos de imigrantes nos EUA (tema já explorado por Yeun no impecável “Minari”) e nos leva a um estudo sobre esses dois personagens e o universo que os cerca. Nascido na Coreia do Sul, Lee Sung Jin entende a rotina dos imigrantes asiáticos nos EUA e retrata bem a importância da comunidade no arco da igreja - o único momento que Danny encontra certa paz é quando se envolve nas atividades.

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Série "Treta", da Netflix. Crédito: ANDREW COOPER/NETFLIX

O racismo e a xenofobia nunca são declarados, mas se fazem presentes, por exemplo, em algumas falas de Jordana (Maria Bello, ótima), uma milionária disposta a comprar o negócio de Amy, mas que poderia muito bem “viajar para a China e comprar tudo por lá” se o negócio não desse certo.

O texto constrói muito bem a tensão até o momento do primeiro confronto entre seus protagonistas, o que não ocorre exatamente da maneira como esperamos. Danny e Amy acabam se tornando obcecados um pelo outro e traçam planos, às vezes até bem elaborados, de vingança, pois o ciclo nunca se fecha, gerando uma escalada de ação e reação.

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Série "Treta", da Netflix. Crédito: ANDREW COOPER/NETFLIX

A primeira metade de “Treta” segue essa fórmula de dramédia de vingança e o faz de maneira divertida, garantindo boas risadas e situações muito inusitadas. É a partir do sexto episódio, no entanto, que a minissérie mostra de fato a que veio. Com episódios sempre curtos, de pouco mais de 30 minutos, a série entra em um ritmo acelerado que torna impossível não emendar um episódio no outro.

“Treta” desenvolve seus protagonistas com maestria, nos levando a sentir suas dores e frustrações. Amy está insatisfeita no casamento “perfeito” e se sente culpada por não passar mais tempo com a filha - com o tempo descobrimos também haver uma mulher insegura por baixo da figura de empresária bem-sucedida, com traumas familiares que a assombram ainda hoje. Já Danny vive distante do sonho americano, com pouco dinheiro, pouco emprego e com uma ingenuidade que sempre o torna alvo fácil de Isaac (David Choe), um primo quase sempre tentando distorcer as regras em seu favor.

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Série "Treta", da Netflix. Crédito: ANDREW COOPER/NETFLIX

É interessante como o texto de “Treta” coloca a raiva e a vontade de se vingar em um lugar de frustração, uma compensação pela maneira como Danny e Amy são tratados pelo mundo que os cerca. Mesmo em posições sociais distintas, ambos são vítimas da pressão capitalista pelo sucesso ou da pressão social por constituir uma família e não se tornar um pária, um fracassado. Esses temas levam a série de Lee Sung Jin a caminhos mais pessoais, tornando os protagonistas pessoas com as quais nos identificamos em níveis de intimidade que até surpreendem.

Steven Yeun e Ali Wong são perfeitos para os papéis. Yeun dá vida a um Danny sofrido, um sujeito que tenta manter o sorriso no rosto, mas que já não sabe mais se tem forças. Já Amy é o estereótipo da mulher de sucesso, mas o roteiro dá a ela camadas que são bem trabalhadas pela série e que funcionam nessa aproximação entre espectador e personagem. É curioso como o arco dos dois sofre do mesmo problema, o subdesenvolvimento da relação de ambos com os pais, o que talvez não seja uma coincidência, mas sim mais um aspecto social da vida de imigrantes.

Série "Treta", da Netflix. Crédito: ANDREW COOPER/NETFLIX
Série "Treta", da Netflix. Crédito: ANDREW COOPER/NETFLIX

“Treta” diverte, deixa tenso e até emociona quando nos aproxima das dores dos personagens. Seu grande mérito é raramente seguir pelo caminho mais fácil, se tornando totalmente imprevisível. É quando tudo parece estar estabelecido que a série opta por saídas que tiram os personagens (e o espectador) do conforto. No ótimo episódio final, o texto muda tudo novamente de lugar trazendo a identificação não do público com os personagens, mas entre eles mesmos.

Com ótima direção de Hikari, Jake Schreifer e Lee Sung In (no último episódio, o mais diferente), “Treta” brinca com o conforto da identificação ao nos fazer entender até as piores escolhas de seus protagonistas e provoca: será que agiríamos como eles? São esses detalhes que, aliados a uma narrativa ágil, nunca no mesmo lugar, fazem da série uma das melhores do catálogo da Netflix.

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