Há um grande equívoco quando se fala sobre algumas obras de humor. O que pouca gente entende é que produtos cômicos e satíricos nem sempre vão te fazer gargalhar do início ao fim. Ano passado, com o polêmico “A Primeira Tentação de Cristo”, o grupo Porta dos Fundos usou um estilo de humor escrachado, feito sob medida para a ira de cristãos. O especial foi um sucesso na Netflix, mas gerou uma revolta desmedida que culminou no ataque à sede da produtora.
Para este ano, o Porta dos Fundos apostou numa pegada diferente. “Teocracia em Vertigem”, referência direta a “Democracia em Vertigem”, filme de Petra Costa indicado ao Oscar em 2020, é um mocumentário (documentário falso) sobre Jesus Cristo traçando um paralelo entre sua história e a política brasileira dos últimos anos - do impeachment de Dilma Rousseff à ascensão de Jair Bolsonaro à presidência.
Entre os entrevistados, Caifás, Pôncio Pilatos, apóstolos, amigos de infância, pessoas curadas por milagres, Barrabás e outras figuras, presentes nos relatos bíblicos ou não. O filme conta com um grande elenco não apenas de atores do Portas, mas também de nomes como Leandro Ramos, Daniel Furlan e Raul Chequer (do “Choque de Cultura”), Paulo Tiefenthaler (“Larica Total”) e algumas participações especiais melhor mantidas em segredo.
Ágil, com cerca de 50 minutos de duração, “Teocracia em Vertigem” pega várias incongruências da fé cristã e as leva para a narrativa. Nos momentos em que conta histórias de Jesus criança, o filme faz lembrar o ótimo livro “O Cordeiro”, de Christopher Moore, em que o melhor amigo de infância de Cristo conta as peripécias do jovem messias.
Em outros momentos, porém, o filme faz muito bem em levar para as telas observações que já circulam pela internet há algum tempo. Revolucionário à época, Jesus seria hoje sacrificado pelos conservadores? “Barrabás é assassino, mas pelo menos não defende puta!”, diz um dos personagens do filme para justificar a crucificação.
A graça do filme dirigido por Rodrigo Van Der Put está nos detalhes e na linguagem atual da narrativa, sem a menor preocupação “histórica” - é claro que as coisas não aconteceram daquela forma, mas o filme ainda usa pinturas famosas que, em teoria, contam o que aconteceu para embasar as narrativas.
O texto usa vários fatos da política brasileira (gabinete do ódio, fake news, apóstolo “decorativo”, 89 mil moedas) para aproximar os dois universos. É interessante ele brinca com diversas teorias da conspiração e muito discurso de ódio, algo muito similares ao que se ouve hoje em dia. Colocando esse discurso em uma história sagrada para alguns, talvez algumas pessoas entendam os males que causam repetindo o discurso hoje.
Ao contrário de “A Primeira Tentação de Cristo”, “Teocracia em Vertigem”, se desenvolve como um filme, ao invés de um amontoado de esquetes. É um produto melhor e mais inteligente que o especial de Natal do ano passado. O texto é divertido, mas requer conhecimento não apenas de política brasileira, mas também de alguns memes que rodam a internet para ser melhor aproveitado. “Teocracia em Vertigem” não vai arrancar gargalhadas, mas coloca um sorriso no rosto pela perspicácia das relações que cria. Vai despertar revolta? Provavelmente, mas a intenção do Porta dos Fundos nunca foi fugir da briga.
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