Recém-lançado pela Netflix, “Terra dos Sonhos” não é um filme natalino, mas poderia ser. Adaptando os quadrinhos “Little Nemo in Slumberland”, de Winsor McCay, publicados como tiras dominicais ainda no século 19 e inspiração para autores como Neil Gaiman e Alan Moore, o filme mergulha na fantasia em uma aventura infantojuvenil encantadora e com mensagem de transformação, um daqueles filmes que deixam uma sensação de bem-estar no espectador após o fim.
Dirigido por Francis Lawrence (“Constantine”, “Eu Sou a Lenda”), “Terra dos Sonhos” nos apresenta a Nemo (Marlow Barkley), uma jovem que vive isolada do mundo, em um farol, ao lado do pai, Peter (Kyle Chandler). Após uma breve introdução que estabelece muito bem a relação entre eles, Peter sai durante uma tempestade e acaba morrendo, forçando Nemo a se mudar para a cidade com o tio Phiip (Chris O’Dowd), de quem seu pai pouco falava e que nunca havia visto antes.
Sozinha, em uma cidade estranha, morando com uma pessoa que não conhece e em uma escola em que não tem amigos, Nemo se refugia no mundo dos sonhos, onde conhece Flip (Jason Momoa), uma espécie de fauno anárquico, punk e fora da lei que costumava acompanhar Peter nas aventuras que ele relatava para a filha.
Por lá, Nemo descobre também a existência de pérolas que podem possibilitar pelo menos um último encontro entre ela e seu saudoso pai, mas o caminho até ela é perigoso até para Flip, um aventureiro experiente. Durante a jornada, Nemo e seu novo amigo enfrentam uma agente do gabinete do subconsciente, Verde (Weruche Opia), e um pesadelo em forma de monstro que insiste em persegui-los.
“Terra dos Sonhos” logo estabelece as regras do mundo dos sonhos, mas elas, na verdade, pouco importam, pois serão repetidas sempre que o texto julgar necessário. Didatismos à parte (há bem mais do que o necessário), o texto faz escolhas interessantes, como na construção de Flip - personagem criado por McCay é a típica caricatura racista de um irlandês. Na versão de Momoa, que aparenta se divertir muito no papel, Flip é um hedonista, um palhaço cujo comportamento incomoda a princípio, mas que faz sentido ser como é quando entendemos se tratar de um sonho de alguém, uma persona criada para ser selvagem e aventureira.
O filme de Frances Lawrence funciona muito em função da dinâmica entre Barkley e Momoa, entre Nemo e Flip. A presença dos dois é bem equilibrada e o diretor nunca permite que o efusivo personagem roube a cena da jovem em luto. Também merece destaque a impressionante qualidade técnica. O mundo dos sonhos é facilmente distinguível, com ares de animação, mas sem o sê-lo, e brincando sempre com o impossível e o proibido - como um canadense voando em gansos gigantes ou uma personagem dançarina sobre a qual não entrarei em spoilers.
“Terra dos Sonhos” tem problemas de ritmo causados pelas idas e vindas de Nemo ao mundo dos sonhos. Durante a primeira hora, queremos conhecer mais o universo fantasioso, mas o filme continua nos levando com frequência ao mundo real. A escolha é compreensível e torna a segunda metade do filme mais aventuresca e fantasiosa, mas também confere à primeira hora aquela sensação de não engrenar.
Mesmo lidando com o luto, o filme é bem divertido e até engraçado não apenas com Flip, mas com todo o design de produção do mundo dos sonhos. É interessante como Lawrence tira proveito total da criação desse universo para contar sua história passeando por ele - o filme nunca passa por um lugar sem utilizá-lo de alguma forma na trama ou sem retornar a ele depois.
A virada do filme funciona justamente por tudo o que foi construído antes dela, e não por ser uma surpresa repentina inserida no texto apenas pelo impacto. É neste ponto que “Terra dos Sonhos” se torna, de fato, um filme para toda a família ao invés de apenas uma boa aventura infantojuvenil.
Nas mãos de um diretor inexperiente e com um elenco menos carismático, “Terra dos Sonhos” provavelmente seria um filme medíocre, mais uma aventura “Sessão da Tarde”. No entanto, com Barkley e Momoa em tela, e Lawrence no comando, o filme ganha vida e afeto, indo além da alcunha de “filme família” e entregando uma boa aventura. O filme da Netflix adapta um clássico aos novos tempos sem se preocupar com “mudaram o Flip, arruinaram minha infância”, afinal boa parte dos que leram McCay na infância já partiram há um bom tempo.
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