O jornalista britânico Alex Kershaw é um grande contador de histórias, e, apesar de ter trabalhado em jornais como os tradicionais “The Guardian” e “The Independent”, para os quais entrevistou nomes como Frank Zappa e o enxadrista Garry Kasparov, foi contando histórias de guerra que ele encontrou sua vocação.
Em 2002, quando escrevia a biografia do fotógrafo de guerra Robert Capa, ele se deparou com a história de 22 jovens da pequena cidade de Bedford, na Virginia, que foram parte da primeira onda de ataques nas praias da Normandia e faleceram em combate. “The Bedford Boys”, livro de estreia de Kershaw, é uma homenagem a esses jovens, com histórias sobre eles e entrevistas com amigos e parentes.
Kershaw tomou gosto pelo tema e lançou diversos outros livros sobre histórias da Segunda Guerra Mundial, entre eles “The Liberator: One World War II Soldier's 500-Day Odyssey from the Beaches of Sicily to the Gates of Dachau”, que não tem edição no Brasil, mas seria traduzido mais ou menos como “O Libertador: A odisseia de 500 dias de um soldado na Segunda Guerra Mundial das praias da Sícilia aos portões de Dachau”. O livro conta a história de Felix Starks que agora chega à Netflix em uma minissérie de quatro episódios.
Desenvolvida e escrita pelo veterano Jeb Stuart (roteirista de “Duro de Matar”), “The Liberator” é toda realizada com técnica de rotoscopia - a série ficou por anos em desenvolvimento pelo History Channel, que a considerou cara demais para ser filmada de maneira convencional. O resultado causa estranheza, a princípio, mas não demora a ser assimilado; é graças à técnica que conseguimos acompanhar a jornada de Felix Starks (Bradley James) à frente do 157º batalhão com toda a grandiosidade necessária para se contar uma história de guerra.
“The Liberator” faz escolhas narrativas interessantes, partindo de um arco menor e mais pessoal até chegar aos grandes combates e às histórias de guerra a que estamos acostumados. Nesse ponto, a série em muito lembra a clássica “Band of Brothers”, principalmente por tentar investir no aspecto humano - o batalhão que acompanhamos é formado por descendentes de mexicanos, índios e irlandeses, etnias que não se davam nada bem nos EUA da primeira metade do século passado. O texto até ensaia, na fala de um oficial alemão, comparar os problemas raciais estadunidenses aos ideais nazistas, mas essa ideia é logo abandonada.
Felix Starks, claro, foi o bondoso homem branco que liderou o batalhão, o que torna impossível dissociar sua figura da contestada imagem cinematográfica do “white savior”, ou seja, o homem branco que aparece para salvar o dia e por vezes até ensinar aos outros a sua própria cultura, algo no estilo “Green Book”. Felix, de fato, é o único personagem realmente desenvolvido em “The Liberator”, que conta com sua narração em off para contextualizar o espectador no início e no final de cada episódio.
Os quatro episódios da série são recortes não necessariamente sequenciais. Acompanhando 500 dias, a série faz saltos temporais e para contar as histórias e tem pouco tempo para desenvolver coadjuvantes. Isso não significa que não existam bons momentos de drama, pelo contrário, a série tem boa carga dramática, mas seria ainda mais forte se tivéssemos mais tempo para acompanhar o surgimento de toda amizade e cumplicidade entre aqueles soldados, algo que a já citada “Band of Brothers” faz com maestria. Em “The Liberator”, o espectador sente a dor de cada perda, mas sempre é Felix quem concentra essa dor para quem está em casa, nós sentimos porque ele sente, e não porque o roteiro fez com que nos importemos com os mortos.
“The Liberator” funcionaria melhor com mais tempo para os coadjuvantes. O roteiro se preocupa até mais em humanizar os nazistas, com algumas boas histórias, do que em dar profundidade aos soldados que lutam ao lado de Felix - na guerra, como o próprio poster da série faz questão de destacar, “nenhum soldado sobrevive sozinho”.
A mistura de animação e atores consegue transmitir a brutalidade do combate e faz com que a minissérie funcione no que se propõe a fazer: colocar o espectador dentro da guerra e fazer com que ele sinta não apenas a violência física, mas que entenda o aspecto mental de soldados que cada vez mais se distanciam da humanidade. “The Liberator” não é perfeita, mas tem tudo para agradar os fãs do gênero que se aventurarem por ela.
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