Em 2020, Anna Winger ganhou destaque ao adaptar a autobiografia “Nada Ortodoxo”, de Deborah Feldman, em uma ótima minissérie homônima para a Netflix. A série trazia a luta de uma mulher por uma nova vida após abandonar o marido e a repressora comunidade hassídica, mas ela logo se percebia obrigada também a encarar seu passado. Winger agora volta com uma nova adaptação com personagens reais em “Transatlântico”, que adapta o livro “The Flight Portfolio”, de Julia Orringer (ainda inédito no Brasil), mais uma história de luta contra a opressão.
Em sete episódios de cerca de 50 minutos cada, “Transatlântico” acompanha o jornalista Varian Fry (Cory Michael Smith) e a milionária herdeira americana Mary Jane Gold (Gllian Jacobs) em suas lutas para ajudar artistas e escritores judeus a fugirem da França durante os dias que antecederam a total ocupação nazista. A série tem início em 1940, na portuária Marselha, ao sul da França, num período em que o país ainda não havia sido ocupado pelas tropas de Hitler e em que os EUA ainda se mantinham “neutros” diante de todas as atrocidades que vinham ocorrendo na Europa.
Neste cenário, Varian e Mary Jane decidem agir, criando um comitê de resgate de emergência, uma organização que usava uma rede de apoiadores - o histórico hotel Villa Air-Bel, falsificadores de documentos - e o dinheiro da família de Mary Jane para tirar da Europa o maior número possível de judeus. A minissérie traz alguns resgatados reais, como o filósofo Walter Benjamin (Moritz Bleitreu) e o escritor Walter Mehring (Jonas Nay), e também lida com as dificuldades da organização, que sofria com casos de corrupção, ganância e, principalmente, com o pouco interesse de alguns na vida desses judeus.
“Transatlântico” é visualmente impecável, com uma reconstrução de época eficiente e sempre dura. Marselha é mostrada ainda como uma cidade de dualidades; nos belos cafés, pessoas conversam normalmente com discursos antissemitistas enquanto centenas de refugiados são abandonados nas praias da região.
Tratando de temas difíceis e de um período de forte apelo dramático, “Transatlântico” até surpreende ao não partir diretamente para uma narrativa de melodrama do Holocausto. Anna Winger e Daniel Handler, cocriador da série, optam por um produto mais aventuresco e romantizado do que o tema sugere, o que funciona tanto como qualidade quanto como problema.
O problema não é transformar a história em entretenimento, pois o texto de “Transatlântico” é sempre respeitoso, dando o devido peso ao recorte, mas a perda de foco. A minissérie seria bem mais interessante, até como resgate histórico, se centrada em Varian Fry e Mary Jane Gold, e na luta deles pelo resgate de vítimas da invasão nazista, mas se perde quando parte para outros arcos como a relação de Mary Jane com o refugiado alemão vivido por Lucas Englander. Ainda assim, há boas histórias nos arcos secundários, como a do cônsul-geral americano em Marselha, Graham Patterson (Corey Stoll), que representa a isenção dos EUA, mas a impressão é de que há histórias muito mais interessantes a serem contadas.
Como uma aventura, “Transatlântico” se esforça para criar tensões a cada episódio, quase de maneira procedural, com arcos iniciados e encerrados dentro desses 50 minutos. Há muitas fugas, resgates e até alguns mini-roubos que oferecem uma dinâmica narrativa à minissérie, mas são todos breves demais para o impacto que pretendem. Isso também possibilita uma grande gama de coadjuvantes orbitando ao redor do núcleo principal, mas, novamente, tira o peso do que realmente importa na história.
É curioso que todos os “defeitos” citados não transformem “Transatlântico” em uma experiência ruim - na verdade, é como se quiséssemos que fosse melhor mesmo estando satisfeitos com o resultado. A minissérie tem ótimos momentos, principalmente quando se concentra no Villa Air-Bel e no que acontece lá dentro (o arco dos surrealistas, por exemplo), além, claro, de sua premissa.
Ao fim, deve-se dar méritos à série por recontar, mesmo que superficialmente, uma história essencial e que nunca deve cair no esquecimento - Fry e Gold são pouco reconhecidos por esses feitos. Como entretenimento, a minissérie da Netflix cumpre o que se propõe a fazer, mas o recorte histórico é tão interessante que leva o espectador a querer mais desenvolvimento dessas figuras ao invés de histórias paralelas.
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