Lançado em 2018 e por muito tempo disponível na Netflix (hoje não mais), o ótimo documentário “Três Estranhos Idênticos” mostra a história de três gêmeos idênticos, separados no nascimento, que descobrem a existência um do outro completamente por acaso quando um deles chega à universidade em que vai estudar. Eles viraram notícia, ficaram famosos e se aproveitaram da fama enquanto puderam, mas, como o filme mostra, a história dos três ia muito além de uma coincidência.
“Três Vidas”, série mexicana lançada pela Netflix, usa a história dos irmãos como sustentação para se vender como uma narrativa baseada em fatos, mas é só. A série protagonizada por Maitê Perroni (“Rebelde”, “Desejo Sombrio”), mesmo se dizendo baseada em eventos reais, é uma grande aventura novelesca cheia de absurdos e as coincidências típicas que marcam as produções televisivas do México.
A série tem início com Aleida (Perroni) invadindo um prédio com uma arma em mãos, em um aparente surto psicótico. Ela atira em algumas pessoas, mas seu rompante tem em uma médica o alvo. Antes de atingir seu objetivo, porém, Aleida é eliminada pela polícia, instituição da qual Rebecca (também Perroni) faz parte. Antes de morrer, Aleida vê Rebecca e a chama pelo nome. Quem seria aquela mulher idêntica a ela e que sabia seu nome?
“Três Vidas” é inicialmente centrada na policial Rebecca e em sua curiosidade acerca do ocorrido. Desde o início, a série subestima a inteligência do espectador com a atuação da polícia - ninguém parece notar, ou ao menos se incomodar, com o fato de Aleida e Rebecca sem idênticas, pelo contrário, as pessoas tentam convencer que a protagonista está louca, que isso é coisa da cabeça dela. Até a mãe da personagem questiona sua sanidade, pois a policial, como manda o clichê de construção de uma personagem “quebrada”, é alcoólatra em recuperação. As coisas se complicam ainda mais quando ela descobre a existência de Tamara, a terceira irmã, e toda a preparação para a história está completa.
Toda essa ambientação é desenvolvida logo nos primeiros momentos de “Três Vidas”, deixando muito tempo para que a série se aprofunde no que realmente deseja construir, um suspense com ares de conspiração e muitas reviravoltas, uma narrativa que tem ciência da força de Maite Perroni e dá a atriz tempo para justificar sua popularidade. Perroni constrói Aleida, Rebecca e Tamara dando a cada uma delas características facilmente distinguíveis para o espectador, convidando-o a ser cúmplice da história ao saber distinguir quem é quem.
O texto, é bom ressaltar, facilita, pois as irmãs são bem diferentes entre si - Aleida é uma executiva bem-sucedida e de gostos refinados, Rebecca, uma policial com problemas com bebidas e de intimidade, e Tamara, uma atriz/dançarina rude e de poucos modos. A atriz se sai bem nas camadas e nos detalhes das duas primeiras, mas parte para a caricatura exagerada com a dançarina.
O esforço de Perroni, no entanto, não salva a série. Longe disso. “Três Vidas” beira o ridículo em diversos momentos, abusando de coincidências e chegando até a ensaiar um arco absurdo de clonagem realizada por nazistas. É constrangedor como a série tenta se conectar à história original dos irmãos de “Três Estranhos Idênticos” ao citar o caso em um ponto crucial da narrativa. A referência ao caso original é a única conexão com a série da Netflix história ser baseada em fatos, ou seja, “Três Vidas” não é uma história real.
“Três Vidas” tenta se manter sempre em movimento, mas tem problemas de ritmo quando busca confundir ainda mais o espectador com algumas tramas que não rumam a lugar algum. A série também abusa do imediatismo, criando possibilidades e as encerrando logo em sequência, sem se aprofundar nelas, talvez por falta de ideias, e sem conferir a algumas situações o peso necessário.
O texto se perde de vez quando afirma a existência de um vínculo sobrenatural entre as irmãs, algo que vai além de qualquer “sexto sentido”. Em um momento constrangedor, no sexto episódio, uma irmã fica completamente bêbada quando a outra bebe, o que o roteiro tenta justificar com algumas coincidências do passado delas, mas praticamente ignora as outras três décadas de vida das irmãs. O vínculo, ao melhor estilo “Sense8”, funciona apenas quando convém ao texto; se a série precisa de algo mais sensual, o roteiro entrega uma das irmãs em um momento picante enquanto a outra sente o desejo, e por aí vai.
“Três Vidas” também exagera no didatismo e na exposição, uma característica das produções mexicanas, que sempre explicam tudo, mas tudo mesmo, ao espectador, sem deixar espaços para a subjetividade ou para interpretações distintas. Como algumas viradas são bem previsíveis, o texto se apoia em algumas surpresas para pegar o espectador desprevenido; o problema é que a principal delas só mostra como, de fato, a série é covarde e pouco criativa.
Se novelas mexicanas e séries como “Quem Matou Sara?” são a sua praia, talvez a nova série de Maite Perroni seja um bom passatempo - o mesmo vale para os fãs da atriz, que tem ótimos momentos na série. Para o resto, porém, “Três Vidas” é desastrosa, uma obra genérica, cheia de vícios e saídas fáceis, uma narrativa muito distante da riqueza do material que a inspirou e uma série que tenta fisgar o espectador com a grife de “história real” sem grandes preocupações com os fatos em si.
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