Em outras mãos, “A Pior Pessoa do Mundo” seria uma comédia romântica tradicional, uma história de uma mulher de quase 30 que conhece um cara uns 15 anos mais velho, passa a viver com ele e a dividir com o espectador um pouco do conflito geracional que o relacionamento, entre idas e vindas, ofereceria. Nas mãos do norueguês Joachim Trier (do bom “Thelma”), no entanto, a mesma história é contada de maneira única, o que colocou “A Pior Pessoa do Mundo” em várias listas dos melhores filmes de 2021 e garantiu a ele duas indicações ao Oscar, Melhor Filme Internacional e Melhor Roteiro Original.
“A Pior Pessoa do Mundo”, vale ressaltar, continua sendo uma comédia romântica e até faz uso da tão amada estrutura narrativa do gênero e do conforto gerado por ela. Dividida em 12 capítulos, um epílogo e um prólogo, o filme acompanha Julie (Renate Reinsve) durante uns cinco anos (o tempo decorrido nunca é revelado). A conhecemos no prólogo como uma jovem muito inteligente, mas ainda em busca de algo que a faça feliz profissionalmente. É após ela conhecer Aksel (Anders Danielsen Lie) que o filme de fato tem início, pois é a relação deles o mais próximo de um fio condutor que o filme apresenta.
Cada capítulo, curto ou longo, traz um momento importante da construção de identidade da Julia que conheceremos ao fim do filme, mesmo que ela talvez nem note isso diante deles. Apesar de serem apresentados cronologicamente, os capítulos são separados por saltos temporais e essas lacunas nunca são devidamente preenchidas - apenas os pontos relevantes são apresentados e nunca de forma didática. “A Pior Pessoa do Mundo” até tem uma narração em off, mas ela é utilizada apenas para ambientar, nunca para explicar.
“A Pior Pessoa do Mundo” é tanto um filme sobre expectativas e as escolhas que nos definem quanto é uma obra sobre amor. O texto escrito por Trier e Eskil Vogt, porém, lida com o sentimento de forma diferente, colocando-o como algo transformador, mas não necessariamente romantizado; um amor que pode persistir após o fim do relacionamento mesmo que ambos sigam adiante, o que fica claro no terceiro ato - o amor, para o texto, é reconhecer a importância positiva do outro em sua vida.
Renate Reinsve tem uma atuação impressionante e magnética, tornando Julie um imã para o olhar do público. Premiada como Melhor Atriz em Cannes, a atriz dá vida a uma mulher encantadora e complexa em um papel de difícil construção. Julie está em constante evolução e sempre descobrindo algo novo sobre si mesmo, mas caminha entre a insegurança e a assertividade em suas escolhas a cada capítulo.
O trabalho do diretor de fotografia Kasper Tuxen (“Toda Forma de Amor”) é ótimo ao retratar a dualidade de Julie. Mesmo em sequências em que a protagonista divide as cenas com outros personagens ela parece sozinha, uma sensação reforçada pela escolha de Joachim Trier de ter sua protagonista conversando com personagens que não estão no quadro.
Parceiro habitual de Trier e protagonista dos dois primeiros filmes da trilogia Oslo, iniciada pelo diretor com “Começar de Novo” (2006) e “Oslo, 31 de Agosto” (2011), Anders Danielsen Lie é essencial como o importante coadjuvante em “A Pior Pessoa do Mundo”, que conclui a trilogia. Aksel é quase uma continuação dos personagens dos filmes anteriores, do idealista Phillip, de “Começar de Novo”, passando pelo frustrado Anders, de “Oslo, 31 de Agosto”, até chegar em Aksel, um quadrinista bem-sucedido com dificuldade para se adequar às transformações agora na casa dos 40. O cineasta cria essa continuidade com certo encanto pessoal e quase como um brinde para quem assistiu aos filmes anteriores.
“A Pior Pessoa do Mundo” também tem uma pequena dose de fantasia na magistralmente editada sequência em que o mundo todo está parado e apenas Julie se movimenta. É o momento do filme em que Joachim Trier se permite ser menos realista e brinca com os sentimentos de forma mais lúdica e até quebrando brevemente a quarta parede em cena que lembra “Fleabag”.
De maneira brilhante, “A Pior Pessoa do Mundo” utiliza uma estrutura clássica de forma inovadora, oferecendo o conforto procurado nas comédias românticas, mas também criando uma trama intimista sobre a vida e o amor, uma história capaz de impactar fortemente o espectador. O resultado é um filme profundo que lida com as angústias do amadurecimento de uma geração e das escolhas que nos definem sem ao menos percebermos.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.