“Uma Garota de Muita Sorte” se esforça demais desde o início. Em menos de 20 minutos do filme dirigido por Mike Barker a partir do romance de Jessica Knoll (que também assina o roteiro) já conhecemos Ani (Mila Kunis), uma jornalista em plena ascensão e com uma vida invejável. Ani se esforçou para conseguir bolsa e estudar nas melhores escolas, se encaixa no padrão invejável de beleza, tem uma boa carreira e está prestes a se casar com Luke Harrison (Finn Wittrock), o noivo dos sonhos de qualquer mulher - pouco importa que ela tenha distúrbios alimentares e sonhe em esfaquear o noivo, o que vale são as aparências.
Em flashbacks vamos conhecendo melhor a protagonista (interpretada por Chiara Aurelia na adolescência) e logo descobrimos que ela é uma sobrevivente de um dos mais letais ataques a escolas nos EUA. Enquanto um ex-colega carrega marcas do ataque e se tornou político, ela prefere não falar sobre e é considerada por alguns até suspeita de ser cúmplice do atirador. O filme é muito didático ao mostrar isso, com direito até a Ani fazendo uma pesquisa na internet para se informar do básico de um assunto que ela domina.
Aos poucos, os flashbacks se tornam mais importantes para a narrativa do que o arco situado em 2015. Não foi o ataque que traumatizou Ani, mas a violência sofrida por ela dias antes, quando foi vítima de um estupro coletivo em uma festa. “Uma Garota de Muita Sorte” é duro ao mostrar as cenas, mas Aurelia é ótima, transmitindo ao espectador a dor e a agonia daquele momento em que é tratada como um pedaço de carne mesmo que peça para seus abusadores pararem.
A questão do trauma, foco do filme, é bem apresentada, mas muito mal aproveitada. Falta sutileza à adaptação do livro de Knoll para criar um filme com mais camadas, com mais subjetividade. A voz interna da Ani adulta faz bons comentários irônicos em alguns momentos, mas o exagero confere à obra uma exposição desnecessária e até irritante - várias cenas seriam mais bem construídas a partir das reações da protagonista, mas o texto opta pelo didatismo.
“Uma Garota de Muita Sorte” tenta abraçar vários arcos e várias mensagens, mas nem sempre se sai bem. É irônico que Jessica Knoll adapte seu livro para uma versão piorada nas telas, pois o filme funcionaria se fosse mais enxuto. Mila Kunis se sai bem como uma mulher que vive de aparências em busca de algo que supostamente a faça deixar os traumas para trás - ao se casar, ela deixará de ser uma filha da classe média, mudará de nome e não mais será “a sobrevivente do massacre”, ao subir na carreira, será respeitada pelo status que carregará. Sem se resolver internamente, Ani busca a transformação perante os olhos da sociedade.
O texto ainda aborda a misoginia e os privilégios de diferentes formas, do abuso sofrido por Ani na adolescência a comentários feitos por seu noivo “dos sonhos”, passando pela noção de que homens héteros ricos e brancos podem fazer o que bem entenderem. O filme, porém, é superficial, nunca explorando os possíveis conflitos com profundidade.
O filme deixa claro, desde o início, que Ani é uma narradora questionável - em uma cena na escola, o professor (Scoot McNairy, escondido pelo texto) elogia a análise da jovem de que Holden Caulfied, personagem de “O Apanhador no Campo de Centeio”, é um narrador em quem não se pode confiar. É justo, assim, acreditar que o público tenha acesso não à verdade dos acontecimentos, mas à visão de Ani sobre eles, o que justificaria algumas escolhas mais controversas.
Ao fim, “Uma Garota de Muita Sorte” tem boas ideias na maneira como lida com o trauma e boas mensagens que se relacionam com a vida da autora, mas uma execução incapaz de sustentar tudo o que o filme pretende. Mike Barker busca um tom estilo “Uma Garota Exemplar”, o que nem sempre funciona pela total ausência de suspense. Sem sutileza e boas viradas, o filme da Netflix desperdiça uma boa atuação e uma oportunidade de trabalhar uma história de construção de imagem social às sombras de um grande trauma.
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