Esqueça tudo o que você conhece sobre Scooby-doo, Salsicha, Daphne, Fred e Velma. “Velma”, série em animação lançada pela HBO Max, se vende como uma história de origem protagonizada pela personagem título, mas, na verdade, é muito mais uma reinvenção das histórias criadas por Joe Ruby e Ken Spears para a Hannah Barbera, e é justamente isso que tem irritado tanto os fãs do material original.
Criada por Charlie Grandy, roteirista com passagem por “The Office” e “Saturday Night Live”, “Velma” se tornou alvo dos conservadores desde seu anúncio. Vendida como “a série da Velma gay”, a animação faz questão dessa iconoclastia, de quebrar tudo o que estava canonizado naquele universo, e faz isso bem. O problema de “Velma” passa longe dessas mudanças, pelo contrário, são elas que tornam a série interessante.
Velma (Mindy Kaling) é uma adolescente de ascendência indiana que cresceu como uma mini-detetive, mas criou trauma de qualquer investigação após a morte da mãe. Sua ex-melhor amiga, Daphne (Constance Wu), tem origem asiática e foi adotada por um casal de mulheres, as delegadas da cidade; já Fred (Glenn Howerton) é um riquinho mimado que finge uma postura adulta, de garanhão, o que a sociedade espera dele, mas ainda tem a cabeça e o corpo de um pré-adolescente. Por último, Norville (Sam Richardson), personagem que conhecemos como Salsicha, é um jovem negro, meio nerd, apaixonado por Velma e ótimo em investigações.
A série tem início com uma morte na escola revelada em uma cena que já chega com o pé na porta. Em seu episódio inicial, “Velma” tem muita informação, muita autorreferência e metalinguagem. Em questão de minutos, a série brinca com os clichês das histórias de ‘whodunnit’, com a expectativa do público diante do que vê e faz boas piadas com “Riverdale”, “Marvelous Mrs. Maisel” e “Mare of Easttown”, reforçando seu lugar no momento cultural de seu lançamento.
O texto coloca Velma às voltas com sua sexualidade - ela é apaixonada por Fred, mas parece ter desenvolvido um crush em Daphne, que está preocupada com sua popularidade na escola e em seu namoro com o popular Fred. Enquanto isso, Norville alimenta uma paixão platônica pela protagonista. Scooby, pelo menos por enquanto, não dá as caras na série.
Inicialmente, tudo gira em torno da série de assassinatos misteriosos, mas “Velma” tenta introduzir novos arcos - nenhum deles interessante - que acabam sendo interligados de alguma forma. O desaparecimento da mãe de Velma, os pais biológicos de Daphne e até a busca pelo assassino que rouba cérebros pela cidade se tornam detalhes perdidos em um texto pouco preocupado com a construção ou a cadência narrativa.
“Velma” é uma metralhadora de referências pop e, na maioria das vezes, é ótima quando se dedica a isso, com boas sacadas e piadas inteligentes. É interessante também o desenvolvimento dos personagens e as transformações por quais passam durante o amadurecimento da adolescência. Velma, Daphne e Fred não despertam empatia imediata, mas são construídos a partir dali, revendo seus comportamentos. “Eu não faço ideia de como ser uma mulher que não julga outras mulheres”, reconhece Velma após a virada de um episódio.
A protagonista ironicamente talvez seja a personagem menos interessante de sua própria série, pelo menos no material disponibilizado pela HBO antes da conclusão da temporada. Isso se dá em função da tentativa de construir um trauma na personagem, arco que domina quase todas suas aparições. Enquanto isso, mesmo nos momentos mais enfadonhos, Daphne é divertida, sagaz e inteligente, tendo em Fred quase um oposto. O projeto de galã é ingênuo, egoísta e nada esperto, fruto de uma criação que o colocou no centro do mundo em uma bolha da proteção.
Apesar de todos os problemas, “Velma” nem de longe é ruim como seus detratores e 'haters' estão propagando por aí. A série tampouco “arruína a infância” de alguém, apenas recria os personagens com uma linguagem atual e dialogando com a contemporaneidade. A busca pelo choque é visível e a série faz disso quase sua razão para existir. Quando é boa, é muito boa, com texto ágil e ótimas sacadas; o mesmo texto, no entanto, falha em prender o espectador em seus mistérios e, principalmente, com sua protagonista.
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