“Você Nem Imagina”, comédia romântica lançada pela Netflix, é o suprassumo da indústria cultural que se tornou a plataforma de streaming. Como já escrevi outras vezes, o serviço entende cada vez mais sua audiência com base no que é mais ou menos assistido na plataforma, ou seja, ele cria seus produtos a partir da demanda de seus assinantes.
Ela já entendeu, por exemplo, que as comédias românticas bombam; entendeu também que seu alcance é mundial, então por que não criar histórias universais protagonizadas por asiáticos? Deu certo em “Para Todos Garotos que Já Amei”, afinal. O serviço entende também o mundo atual e, por isso, a maior parte de suas comédias tem personagens de minorias normalmente discriminadas em papéis de protagonismo, e esses personagens se relacionam com outras minorias étnicas, religiosas, sexuais com pouco ou nenhum problema - o conflito nas tramas não é desenvolvido em cima de preconceitos, mas em emoções e desenvolvimento dos personagens, o que é ótimo. É a fórmula que deu certo em "Sex Education" ou "Eu Nunca..." sendo levada adiante.
Essa fórmula, claro, padroniza, cria uma estética visual e narrativa a ser seguida, e essa estética será utilizada até o algoritmo mostrar que já não vale mais a pena, que é hora de tirar o pé do acelerador. Quando será isso? Não se sabe. Com certeza não será agora, pois o tal do “Você Nem Imagina” sobre o qual falei no início do texto é ótimo.
Pop & Cult
O filme dirigido por Alice Wu é uma espécie de “Cyrano de Bergerac” moderno. Na trama, a jovem chinesa Ellie Chu (Leah Lewis) é uma brilhante aluna que ajuda no sustento do pai escrevendo ensaios e trabalhos para seus colegas de escola. Tímida, ela é apaixonada por Aster Flores (Alexxis Lemire), mas nem sonha em se declarar. Aster é linda, mas Ellie enxerga nela algo além da beleza - a garota popular da escola também é inteligente, com gosto apurado para literatura e cinema.
Aqui é que entra a influência quase direta da peça de teatro de Edmond Rostand. Um dia, Paul (Daniel Diemer), apaixonado por Aster, pede que Ellie lhe escreva uma carta, pois ele tem dificuldade com as palavras. Ela escreve, Aster responde, Paul leva o crédito, mas a cumplicidade da troca de mensagens fortalece uma relação que não é real.
“Você Nem Imagina”, assim como “Por Lugares Incríveis”, outro bom filme da Netflix, abusa da estética do cinema independente e de referências cult. Estão lá a cidade do interior de poucas oportunidades, o sentimento de não-pertencimento tão comum à adolescência, referências a Platão, “Twin Peaks”, Wim Wenders e “Vestígios do Dia”.
O filme de Wu é delicado e o roteiro, também da diretora, é sensível o suficiente para não estigmatizar comportamentos; o fato de Ellie ser gay é apenas uma característica da personagem, não o conflito. Da mesma forma, sua inaptidão social se dá muito mais por sua personalidade do que pela exclusão de seus colegas de escola. Na pele de Aster enxergamos e sentimos angústias raramente desenvolvidas na figura da “garota popular da escola”. Paul, a terceira parte do triângulo, também ganha camadas além do atleta caipira; ele é um cara educado, adorável (sua amizade com o pai de Ellie é ótima) e fruto do meio em que vive. Cada um tem suas dores e seus dilemas não são subestimados.
Um grande acerto do texto é a maneira como ele trata todos os personagens envolvidos na trama principal com atenção aos detalhes. Wu parece ter plena ciência de que se não levasse o espectador a se identificar com Paul e Aster, além de Ellie, seu filme seria unidimensional, raso. Isso leva o filme além de uma comédia romântica ou de um drama juvenil.
“Você Nem Imagina” é uma jornada de descobertas, angústias e autoconhecimento embalada em um modelo altamente pop e consumível. O filme de Alice Wu é uma reunião de referências e influências feita para agradar o público da plataforma. Talvez não funcionasse bem nos cinemas, mas dialoga com extrema competência com a audiência do streaming, e isso não é coincidência.
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