Quando a HQ “Y: O Último Homem”, de Brian K. Vaughan e Pia Guerra, foi lançada, em 2002, o mundo era completamente diferente. O trauma recente eram os ataques de 11 de setembro do ano anterior, que havia deixado cerca de 3.000 mortos e outros milhares feridos. O texto de Vaughan lidava com o luto de forma interessante após todos os portadores do cromossoma Y da Terra morrerem de forma misteriosa. O mundo repentinamente se viu sem homens, ou pelo menos homens cis, trazendo para hoje uma discussão sem tanto espaço na época.
Após muitos anos de idas e vindas durante a produção, a série “Y: The Last Man”, que adapta a cultuada HQ, chega finalmente às telas - a estreia é nesta segunda (13) no recém-lançado serviço de streaming Star+ (sim, mais um). As quase duas décadas que separam os dois produtos viram grandes transformações sociais e também mais de 4.500.000 (quatro milhões e quinhentos mil) mortos pela pandemia de Covid-19. A ideia ganha novos contornos e significados, mas se mantém bem eficaz.
Nos quadrinhos, “Y: The Last Man” é a história de Yorick (na série vivido por Ben Schnetzer), o tal último homem, e seu macaco, Ampersand, talvez os dois únicos seres vivos com o cromossoma Y no mundo. Nos episódios liberados para crítica, no entanto, “Y: The Last Man” é mais uma história sobre as mulheres, principalmente sobre a Senadora Jennifer Brown (Diane Lane), obrigada a assumir a presidência dos EUA após toda a linha de sucessão, formada quase toda por homens, morrer no dia do incidente. Democrata e opositora do antigo governo, a agora presidente tem que lidar com o caos instaurado no país e também com tramas políticas comandadas por antigos apoiadores e pela família do ex-presidente, um republicano conservador “alt-right”.
A série também dá bastante atenção à Agente 355 (Ashley Romans), uma agente black-ops que responde apenas ao presidente em exercício e estava em seu primeiro dia de trabalho quando tudo aconteceu. É certo dizer que a série também trará arcos bem desenvolvidos para Nora (Marin Ireland), ex-assessora do presidente morto, e Hero (Olivia Thirbly), irmã de Yorick, assim como, se espera, toda trama das Amazonas existente nos quadrinhos.
“Y: The Last Man” mantém tons distintos para uma premissa tão pesada. Yorick é descompromissado, intencionalmente irritante, e parece não ter a noção exata da gravidade do ocorrido. É irônico que a criatura mais “especial” do planeta pós-apocalipse seja tão “não-especial”, um perdedor. A interação do jovem com Ampersand rende os poucos momentos de humor ao texto. Ao contrário da HQ, que já o coloca correndo pela sobrevivência logo de início, a série tem uma cadência diferente até na sua apresentação, guardando alguns segredos para quem não leu a obra original.
O episódio piloto traz um breve vislumbre do que o mundo se tornou e nos apresenta Yorick antes de voltar no tempo para criar o contexto, se preocupando em apresentar os personagens, dar certa profundidade a eles e introduzi-los ao mundo criado por Vaughn antes do evento.
A showrunner Eliza Clark opta por algumas mudanças no material original para deixá-lo com uma narrativa mais condizente com a de uma série. Alguns arcos são eliminados (pelo menos a princípio) enquanto outros são adaptados (as esposas republicanas) e condensados para funcionar melhor na TV. Apesar de a série dar mais tempo às mulheres, Yorick (e sua existência) ainda é o foco central do texto, em torno de quem o roteiro se movimenta.
Transportada para os dias de hoje, a história ganha camadas como a sobrevivência de homens trans e oferece diálogos ótimos entre Hero e o amigo Sam (Elliott Fletcher), um homem trans sobrevivente. Os roteiristas tratam do assunto com delicadeza e oferecem diversas possibilidades narrativas inéditas à série.
Com todo o universo e os personagens apresentados, “Y: The Last Man” demora um pouco a engrenar. A ação da HQ cede espaço às tramas políticas e a série também deixa de lado a pegada mais pop do material original, um de seus charmes, se tornando um produto quase sempre sisudo - o que obviamente condiz com a premissa.
A série traz bons elementos de “The Leftovers” misturados a uma ambientação mais próxima de “The Walking Dead”, mas ainda não apresenta uma identidade própria. Os dois primeiros episódios preparam o terreno para a roda começar a girar a partir do terceiro e indicam uma narrativa muito mais política, de reconstrução de um país, do que se espera de um drama pós-apocalíptico.
A princípio, há muito pouco do mundo fora da Casa Branca além de informações desencontradas que chegam à presidente. Para um início, a escolha funciona, pois realmente pouco se sabe daquele mundo e do ocorrido, mas a série vai precisar ampliar seu escopo para conquistar a empatia do público sempre em busca de personagens com quem se identificar. “Y: The Last Man” por enquanto é promissora, mas precisa se esforçar para se destacar em um mercado acostumado às distopias e em um mundo que parece estar vivendo uma nos últimos 18 meses.
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