Reli alguns textos recentemente para refletir sobre a previsão de que teríamos muitos problemas de saúde mental após a superação dos piores momentos da pandemia de Covid-19. Era comum encontrar, desde o ano passado, pelo menos, artigos e matérias na imprensa expressando que o Brasil estava enfrentando uma “segunda pandemia”, desta vez na saúde mental. Farei alguns breves comentários sobre o assunto.
Por ter passado por uma experiência pessoal dolorosa e sofrida, eu me vi praticamente no dever de escrever algo sobre esse assunto, que considero de interesse coletivo. Recomendo a busca por um tratamento de saúde especializado a todos que estiverem passando por situações de angústia, ansiedade, depressão, insônia ou algum mal-estar psíquico.
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) divulgou no dia 13 de outubro de 2022 um texto informativo, em seu site, sobre a segunda pandemia. “O aumento nos transtornos ansiosos e depressivos é uma tendência dos últimos anos, mas atingiu patamares muito mais alarmantes após a crise sanitária”, declarou a professora Dorisdaia Humerez então.
Citando números do Datasus, o Cofen revelou “que o total de óbitos por lesões autoprovocadas dobrou nos últimos 20 anos, passando de 7 mil para 14 mil”. Antes da pandemia, dados apontavam “episódios depressivos como a principal causa de pagamento de auxílio-doença não relacionado a acidentes de trabalho, correspondendo a 30,67% do total, seguida de outros transtornos ansiosos (17,9%)”.
De acordo com o Cofen, deveríamos ter seguido os alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS), que havia sinalizado em 2020 para o fato de que “a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou cerca de 25%”. Deveríamos então ter ampliado os serviços de assistência à saúde mental. “É quase o oposto do que fizemos”, avaliou a professora Dorisdaia, indicando interrupções na assistência e cortes no financiamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), citada pelo Cofen, “ao contrário do que muitos imaginam, o impacto da saúde mental sobre o trabalho é tão relevante nos países de baixa renda quanto nos países desenvolvidos”. Estima-se o custo à economia global de aproximadamente um trilhão de dólares anualmente. O trabalho pode curar pela socialização e pela constituição de laços de solidariedade, mas ele também pode contribuir para adoecimento psíquico.
Para a professora Dorisdaia, “a ideologia gerencialista, que busca canalizar todo o capital mental do indivíduo para o trabalho, pode desencadear quadros agudos de estresse, ansiedade e depressão”. A professora acrescentou que “a vigilância panóptica também mina a motivação intrínseca do indivíduo, o sentimento de coletividade”. O reconhecimento dos problemas derivados da síndrome de burnout já encontra espaço de destaque na imprensa brasileira.
Comecei a pensar neste artigo a partir de uma releitura que empreendi do livro “Sociedade do cansaço”, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, editado pela Vozes, em 2017. O professor da Universidade de Berlim afirmou que “os adoecimentos neuronais do século XXI seguem, por seu turno, não a dialética da negatividade, mas a da positividade”. Nesse sentido, os estados patológicos derivam de um exagero de positividade.
A violência da positividade resulta, segundo Han, de “uma violência sistêmica, isto é, uma violência imanente ao sistema”. Sociedades de desempenho e as pressões permanentes por melhores desempenhos produzem depressivos e fracassados. A depressão representa “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”, que, para Han, é o caso de uma humanidade que está em guerra consigo mesma.
Han considera que “a sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são uma sociedade livre”. Elas engendram novas coerções. A sociedade do desempenho gera cansaços e esgotamentos excessivos. Segundo o filósofo, “o cansaço da sociedade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando”.
Recomendo, para os interessados, o livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”, editado pela Autêntica em 2021, que reuniu o trabalho do grupo de pesquisa do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo (USP). Organizado por Vladimir Safatle, Nelson da Silva Júnior e Christian Dunker, o livro mostrou como vem sendo feita a construção da ideia de administração do sofrimento para impulsionar a produtividade em sociedades capitalistas desde a década de 1970.
Competitividade e individualização tornaram-se parte fundamental do sujeito em diversos países. Quase quatro séculos de escravidão deixaram marcas profundas na sociabilidade brasileira. Conforme descreveu Darcy Ribeiro, em “O povo brasileiro” (1995), a nossa formação econômica esteve associada aos moinhos de gastar gente. A exploração predatória da natureza também integrou esse processo histórico. Desejamos realmente modificar essa trágica normalidade? Quais políticas públicas precisam ser revistas?
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