“Quem me dera ao menos uma vez / Como a mais bela tribo / Dos mais belos índios / Não ser atacado por ser inocente (...) Nos deram espelhos e vimos um mundo doente / Tentei chorar e não consegui” (“Índios”, Renato Russo)
Em 1988, ou seja, há 34 anos, comprei um rádio-relógio numa viagem aos EUA que ainda tenho comigo funcionando até hoje. Ele é praticamente a primeira imagem do meu dia a dia, pois assim que acordo, seus números digitais na cor vermelha me dizem que horas são. Preciso comprar um relógio de mesa novo? É óbvio que não.
Ao longo da vida, vamos adquirindo todo tipo de coisa, algumas mais úteis do que outras. Tem pessoas que são acumuladores, não se desfazem de nada. Outros já são mais desprendidos.
No meu caso, tenho tentado diminuir o meu guarda-roupa, isto é, ter menos coisas do que o necessário – pra que vários sapatos, se só usamos os mesmos? – e assim gastar menos tempo na hora de escolher o que usar. Mas é claro que muita gente não pensa desse jeito.
Mas se tem uma coisa que comprei muito ao longo dos anos foram revistas, livros e discos.
É claro que ninguém mais compra disco, afinal está tudo na internet. Mas confesso que ainda não tive coragem de me desfazer dos meus vinis e CDs. Para ouvi-los, tenho alguns tocadores de CDs, além de uma vitrola (dessas modernas, com entrada USB e para cartão de memória). Apesar disso, tenho que admitir que é cada vez mais raro usar tais tipos de mídias para ouvir música.
Sobre os livros, é preciso dizer que tenho orgulho da minha biblioteca de arquitetura, contendo títulos de referência, muitos deles comprados até mesmo em sebos. Mas também tem os livros de arte, os de literatura e, principalmente, os quadrinhos (HQs). Tem livro pequenininho e os enormes, como três atlas (entre eles o “Brasil ao Milionésimo”, lançado em 1972 pelo IBGE no sesquicentenário de Independência e que apresenta o país em mapas na escala 1/1000).
Obviamente, em tempos de Google Maps e Google Earth ou quaisquer outros aplicativos do gênero, um atlas impresso grande e pesado soa como uma peça de museu, uma velharia.
Mas para um amante de livros, isso não é um problema, ou não deveria ser...
Na verdade, pelo menos para mim, o problema tem sido mesmo as revistas, em especial as de arquitetura. Houve uma época em que comprava muitas revistas, a maioria importada. Revistas maravilhosas, como a italiana Domus, a inglesa Architectural Review e a espanhola Arquitectura Viva. Era o modo de nos mantermos atualizados ao que acontecia no mundo da arquitetura.
Neste ponto, trago uma situação que ocorreu comigo recentemente. Na condição de apaixonado por livros, quadrinhos, discos..., recebi telefonemas de alguns amigos que queriam me doar suas coleções. Agradeci a lembrança, conversamos sobre o assunto, mas o fato é que tive que recusar a gentileza deles.
Falta de espaço, mudança de endereço, poeira, etc., enfim, não faltam motivos para querermos nos desfazer daquilo que fomos colecionando com carinho ao longo do tempo.
A probabilidade de voltar a ler ou consultar qualquer revista é mínima, mesmo elas estando em perfeito estado de conservação. Daí ter tentado, sem sucesso, doar as revistas para alguma biblioteca. Nem as bibliotecas públicas, como a estadual ou a da universidade, bem como as de faculdades particulares, tiveram interesse em receber o material.
E aí me pergunto: pra que servem então as bibliotecas? Não estarão elas dando um tiro no próprio pé?
Lembro do prazer de ter estudado em bibliotecas, seja quando era estudante de graduação ou durante o doutorado na Espanha. E não tem como não ficar deslumbrado quando se visita alguma biblioteca numa daquelas famosas universidades norte-americanas ou em mosteiros medievais europeus. E o que dizer do Real Gabinete Português de Leitura, a deslumbrante biblioteca manuelina no Rio de Janeiro?
Aparentemente, trata-se de um fim de uma era, isto é, ler ou estudar num livro físico. É claro que a natureza agradece o menor consumo de papel e, consequentemente, a diminuição na derrubada de árvores. E tenho que admitir que ler num Kindle é realmente muito prático, além de mais econômico, pois um mesmo livro no formato digital é mais barato que na versão em papel.
Isso, porém, não diminui meu drama atual, isto é, o que fazer com as minhas revistas?, pois dói pensar em jogá-las no lixo. Imagino que muita gente nem sequer se preocupa com algo assim, achando normal a obsolescência das coisas.
Como temos visto recentemente, tem até quem ache normal a obsolescência das pessoas. E pelo que foi noticiado, há, inclusive, quem pense que índio é “algo” obsoleto e, portanto, não deveria mais existir.
Trata-se, enfim, de um princípio, viver ou não num mundo em que tudo que “aparentemente” não tem utilidade pode ser descartado?
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