Era o ano de 1924. Na pequena Anchieta, no Sul do Espírito Santo, um juiz decidiu que a cidade precisava de um promotor público e fez a nomeação. A decisão gerou insatisfação entre as autoridades da época, e uma delas recorreu ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo pedindo que fosse analisada a legalidade do ato. O principal motivo era o fato da pessoa escolhida ser uma mulher.
Ormy Vianna Baptista foi nomeada interinamente para a função de promotora pública. Com o ato assinado pelo então juiz da comarca, Danton Bastos, em 27 de maio daquele ano, ela se tornou a primeira mulher do Brasil a assumir o cargo. Fato que levou a um debate entre as autoridades e os desembargadores da Corte de Justiça, que não aceitavam que uma mulher ocupasse uma vaga destinada a um homem.
Ao fazer a defesa da promotora, o procurador-geral de Justiça da época, Antonio Tavares Bastos, apontou que não havia respaldo na lei para tal discriminação. “Não há lei que prohiba ao juiz da comarca faça recahir a escolha para as substituições temporárias dos promotores públicos em pessoa do sexo feminino, e isso mesmo nenhuma disposição legal manda observar, ao poder competente, a nomeação effectiva de bacharéis de um único sexo, para servirem de órgãos ao M. P. no Estado”, diz o texto, do qual foi mantida a grafia da época.
A defesa de Ormy
Parecer do procurador-geral de justiça Antonio Tavares Bastos, em 1924, em defesa da promotora Ormy Vianna Baptista
“Uma porta-voz para a Justiça”
Pouco se sabe sobre a história de Ormy. Os fatos que a envolvem, segundo o coordenador de Patrimônio Histórico de Anchieta, Ivan Petri Florentino, ocorreram no final da República Oligárquica, época dominada pela cultura cafeeira e pelos coronéis. “Provavelmente era filha de uma família com recursos, o que permitiu que ela tivesse acesso à educação e ao cargo que veio a ocupar”.
Na época os juízes respondiam por várias comarcas. Danton Bastos, que era carioca, atendia, além de Anchieta, outras cinco cidades. Petri relata ainda que a cidade tinha movimentação portuária de café e mercadorias vindas da Europa, e que estava se desenvolvendo com a chegada dos imigrantes. “A nomeação de Ormy, naquele momento, garantiu ao juiz um ‘braço direito’ em Anchieta, ela era como uma porta-voz para a Justiça”.
Mas nem o apoio familiar, da elite local e do juiz que a indicou foram suficientes para impedir que os direitos de Ormy fossem cerceados. Ela teve o pagamento dos seus proventos negado por ser mulher. E pelo mesmo motivo foi decidido que a sua nomeação não deveria ter ocorrido.
“O Pleno do Tribunal de Justiça deliberou que, em face da lei vigente, o juiz de direito da comarca de Anchieta não deveria ter nomeado a senhorita Ormy Vianna Baptista para exercer, interinamente, o cargo de promotor de justiça da referida comarca, e determinou que oficiasse ao secretário do Interior, comunicando-lhe a decisão”, relata texto do Memorial do MPES.
Pioneira
A chefe do Ministério Ministério Público do Espírito Santo (MPES), Luciana Andrade, destaca que Ormy foi uma pioneira. Uma mulher à frente do seu tempo, que tinha estudado, se formado e estava pronta para exercer uma função que não era admitida.
“Ela foi muito de vanguarda e isso causou realmente uma insatisfação em segmentos da sociedade, que entendiam que uma mulher não poderia ocupar a função. Havia essa discriminação, esse preconceito de que homens podiam mais do que as mulheres em questões que impactavam tanto homens quanto as mulheres”, observa a chefe do MPES.
Luciana relata que para o MPES, a nomeação e a atuação de Ormy, contribuíram para o acesso das mulheres ao trabalho; “Ao trabalho em todas as esferas, em especial no sistema de Justiça que é onde vamos garantir direitos e pacificar litígios”.
Mudanças
A nomeação de Ormy aconteceu em meio ao movimento sufragista, apontado por alguns historiadores como o ponto alto da primeira onda do feminismo e da luta pela igualdade de gênero. Foi uma luta que no Brasil se concretizou em 1932.
Uma conquista alcançada três anos antes por uma capixaba, na cidade de Guaçuí, no Sul. A empresária Emiliana Emery Viana, 55 anos, obteve na Justiça o direito ao voto e se tornou a primeira mulher no Espírito Santo a obter um título de eleitor, em 1929.
Nas décadas que se seguiram, mudanças ocorreram na legislação brasileira, a principal delas trazidas pela Constituição Federal de 1988, estabelecendo que todos são iguais, que todos têm o direito de exercer direitos. Mas ainda há muito a ser feito, considerando que as mulheres ainda enfrentam diversos desafios, como as desigualdades salariais, a pouca presença em cargos de poder, a falta de oportunidades, a baixa representatividade na política e a violência, com destaque para a principal delas, o feminicídio.
“As leis existem e é preciso que sejam de fato cumpridas em todas as esferas. O Ministério Público não vai deixar nunca de cumprir o seu papel de defesa em especial dos mais vulneráveis, para que não se repita em nenhum canto do nosso Estado o que aconteceu com a nossa colega Ormy", assinala Luciana.
Em 2022, Ormy foi homenageada pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), órgão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), que incorporou seu nome à denominação do grupo.
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