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O que o assassinato de uma idosa revela sobre o feminicídio no ES

No próximo dia 7 será realizado o julgamento do acusado de matar uma idosa de 68 anos; o casal, segundo o processo na Justiça estadual, vivia um relacionamento conturbado

Vitória
Publicado em 06/03/2024 às 05h01
Crime feminicídio
Julgamento de feminicídio no ES. Crédito: Arte: Geraldo Neto

Foram sete anos de um relacionamento marcado por brigas e agressões. O companheiro foi denunciado, preso e voltou mais violento. E ela continuou sendo alvo de muitos espancamentos, até com toalha molhada. Foi dopada, passou fome, perdeu o movimento das pernas até ser morta a facadas, aos 68 anos. O acusado pelo seu assassinato,  hoje com 74 anos, vai ser julgado nesta quinta-feira (7), véspera do dia internacional da mulher.

Marilene Ferraz de Oliveira era alegre, ativa, proprietária de um bar e um restaurante na Grande São Pedro, em Vitória, onde morava. Conheceu o seu companheiro ao alugar um quarto para ele. Ali teve início o relacionamento e logo depois a saga de violências que a tornou uma pessoa triste, que se afastou da família e dos amigos. No processo é relatado ainda que ela tomava vários medicamentos anti-inflamatórios, que não surtiam efeito nos ferimentos em decorrência das contínuas agressões.

Sua morte foi o ato extremo de todas as violências que sofreu no decorrer do relacionamento. “O feminicídio é o último ato. Não é de um dia para o outro que o homem acorda e decide matar a mulher. Há um histórico, um ciclo de violências que as mulheres sofrem”, explica Renata Bravo, advogada criminalista, mestra em Direitos e Garantias Fundamentais.

A advogada destaca que a violência psicológica só virou crime a partir de 2021. Com isso, Marilene deve ter passado parte de sua vida entendendo que violência era só a física. Um engano comum, infelizmente. “É uma cultura que a gente precisa mudar, porque qualquer tipo de violência, de constrangimento, de ameaça, de impedimento da mulher de viver livre, de viver a vida dela de forma digna, merece atenção. Pode ter ali uma violência doméstica e familiar, e que muitas das vezes vai coincidir com a violência física e, infelizmente, com um feminicídio”, reforça Renata.

A advogada faz outro alerta importante, considerando que o crime de Marilene ocorreu em um bairro periférico: a violência pode atingir qualquer mulher, não importa raça, profissão, religião, idade, cor, local onde mora, condição social ou profissional. “É triste constatar o fato de que nenhuma mulher está livre de sofrer uma violência e um feminicídio”.

Sem mudança

Por outro lado, é um ciclo de violência difícil de ser rompido. Marilene denunciou o seu agressor e, segundo informações do processo, ele chegou a ficar preso por 110 dias. Ao sair do presídio, eles retomaram o relacionamento e logo depois ele voltou a agredi-la. Horas antes de ser morta, ela tinha tomado a decisão de se separar. Não teve chance.

Em outros processos, é comum encontrar mulheres que desistem das denúncias ou que mudam seus depoimentos, inocentando os agressores das acusações. Mas são ações e atitudes que não podem ser julgadas. Os crimes contra a mulher, especialmente os de violência doméstica e familiar, envolvem relações afetivas e são permeados de muita culpa. O agressor que precisa ser denunciado pode ser o pai de seus filhos, o amor de sua vida, ou o seu pai, o seu irmão.

“E sem contar a construção social que tende a culpabilizar a mulher por acabar com o casamento porque denunciou o cara, quando na verdade o culpado é o agressor”, destaca Renata.

No ano passado, 35 mulheres foram mortas no Espírito Santo apenas por serem mulheres. Em mais de 75% dos casos, quem pôs fim às suas vidas foi quem estava ao seu lado, o marido ou companheiro, segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp). Outro detalhe: tal como no caso de Marilene, 60% dos crimes de 2023 foram cometidos com o uso de arma branca, como facas.

O julgamento

Crime aconteceu em São Pedro, Vitória, na tarde desta quarta-feira (10)
Marilene Ferraz de Oliveira, de 68 anos, morta a facadas pelo marido. Crédito: Acervo pessoal

Clovis Vanderlei de Oliveira, 74, vai sentar no banco dos réus pelo assassinato de Marilene. Segundo a sentença de pronúncia — que o encaminhou a julgamento —, ele confirmou o alcoolismo, mas negou que fazia uso de drogas. Também negou as acusações e disse “que não se recorda” do crime.  Afirmou ainda que a  vítima era cadeirante e que "a levava para todos os locais, dava banho, comida".

No mesmo documento há informações de que ele "fazia uso de medicamentos controlados" e que foi condenado por matar sua ex-esposa. Seu advogado de defesa não foi localizado para se manifestar.

A mesma decisão indica que ele vai enfrentar os jurados por feminicídio. Ele permanece detido desde a data do crime, que aconteceu em agosto de 2022, na residência onde o casal morava, em São Pedro. Há um ano a Justiça estadual decidiu que ele sentaria no banco dos réus.

Segundo o promotor Rodrigo Monteiro, que atua no Tribunal do Júri da Primeira Vara Criminal de Vitória e vai realizar o julgamento, o crime cometido por Clóvis foi causado por seu ciúme doentio por Marilene. “Um violência extremada que gerou comoção na comunidade”, relata.

Ele destaca que julgamentos realizados em datas próximas ao dia internacional da mulher possuem simbolismo, principalmente em um momento em que se vive uma nova onda de violência contra a mulher. E uma forma de reduzir essa violência é com a prevenção e aplicação de uma sanção justa, explica.

“A pena tem este efeito preventivo. Esta cultura machista de entender a mulher como coisa, tem que ficar no passado. O Judiciário e o Ministério Público não coadunam com este tipo de situação e nós vamos realizar estes julgamentos, fazendo justiça, preservando a memória e a história das que morreram e, principalmente, preservando a vida das que estão vivas ”, assinala o promotor.

Renata acrescenta que é uma reparação importante para a família e um recado para a sociedade. “Não podemos cruzar os braços e aceitar uma realidade de mulheres sendo vítimas de feminicídio. O Estado precisa dar uma resposta, que vem também com a punição. É importante porque essa cultura patriarcal, machista, opressora e agressora contra as mulheres precisa mudar”.

Cuidado de todos

Marilene tentou mudar a sua situação, mas não conseguiu. Nos depoimentos no processo é relatado que ela era vista com braço quebrado, olho roxo, e dava a desculpa de que tinha caído no banheiro. Com o tempo perdeu suas forças e a vida para as humilhações e agressões.

O que mostra que, além de estar atenta aos sinais da violência, é preciso ainda contar com uma rede de apoio. “Os conhecidos, os amigos, a família também precisam estar atentos, precisam apoiar, ajudar. Com segurança, precisam, sim, 'meter a colher'. Digo isso porque às vezes a mulher não vai ter coragem ou forças para mudar o cenário de violência”, finaliza Renata.

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