Jamais subestime o descaso e a indiferença de certos políticos com a opinião pública. Jamais ignore o quanto eles ignoram o que nós pensamos sobre eles e as suas atitudes. O episódio que trazemos aqui hoje é uma prova irrefutável de como, na Câmara de Vitória, os vereadores simplesmente não dão a mínima para o que as pessoas pensam ou deixam de pensar. E de como não hesitam em escarnecer da mesma sociedade que deveriam representar. Você pode não saber, mas acaba de ser feito de palhaço pelos parlamentares da Capital.
Sim, a palavra é forte, mas não há outra diante dos fatos que aqui serão narrados. A Câmara de Vitória acaba de promover o derradeiro ato de deboche com a cara da população, no melancólico número final de uma legislatura que não deixará saudade alguma.
Para que o leitor ou leitora melhor compreenda do que estamos falando, voltemos ao início desta história e deixemos que o próprio presidente da Câmara de Vitória, Cleber Felix (DEM), comece a contá-la, por meio do efusivo post publicado por ele em sua página no Facebook no dia 6 de maio:
“O Plenário da Câmara de Vitória aprovou na sessão ordinária virtual desta quarta-feira a redução de 15 para 8 assessores nos gabinetes dos vereadores. Agora, o limite de gastos mensais por gabinete será na ordem dos R$ 29 mil. Com a aprovação da matéria, a Casa fará uma economia de R$ 10 milhões a cada legislatura. A economia de verba pública é uma de nossas prioridades. [...] Esperamos que a Câmara de Vitória se torne um exemplo positivo para casas legislativas em todo o Brasil. #economia #responsabilidade #cmv”
De fato, como celebrou Clebinho, sob loas e aplausos da imprensa, a Câmara de Vitória aprovou, no dia 6 de maio deste ano, por 8 votos a 4, o projeto de resolução que reduziu o número máximo de assessores por gabinete e o limite de gasto mensal de cada vereador para pagar os salários dos respectivos assessores, nos números destacados pelo presidente. Importante: a mudança passaria a valer na próxima legislatura, ou seja, a partir de 1º de janeiro de 2021 (daqui a duas semanas).
O projeto original havia sido proposto cerca de um ano antes pelo vereador Roberto Martins (então no PTB, hoje na Rede) e depois foi assinado por outros vereadores. Conforme a primeira redação de Martins, o número máximo de assessores lotados em cada gabinete seria reduzido de 15 para 10. Mas, durante a discussão e a votação da matéria, o vereador Max da Mata (Avante) propôs uma emenda, acolhida em plenário, para ampliar ainda mais a redução, de até 15 para até 8.
Outra emenda, proposta por Davi Esmael (PSD) e também aprovada em plenário, estabeleceu que pelo menos metade dos assessores de cada gabinete deveria ter ensino superior. Os votos contrários ao corte de assessores partiram de Dalto Neves (PDT), Neuzinha de Oliveira (PSDB), Luiz Paulo Amorim (PV) e José Amaral (Podemos).
Após a aprovação do projeto, Clebinho não foi o único vereador que foi às redes sociais festejar. Muitos fizeram propaganda e oba-oba, capitalizando sem cerimônia o “sacrifício”, o “desprendimento”, a demonstração de “responsabilidade” e “economia”, como constam nas hashtags de Clebinho. Autor de uma das emendas, Da Mata chegou a conceder entrevista ao matutino “Bom Dia ES”, da TV Gazeta.
E nós da imprensa realmente pensamos: “Uaaaau! Nunca antes… A Câmara de Vitória cortando na própria carne...”
Só que não. Essa navalha era cega. E qualquer elogio ou festejo veio muito antes da hora. Em se tratando da Câmara, deveríamos ter desconfiado desde o início… Alerta de spoiler: no fim das contas, não haverá mais redução alguma e tudo ficará exatamente como está. Os vereadores recorreram ao VAR: “Vamos Arquivar a Resolução”. E assim foi feito nesta quinta-feira (17). Devem achar que somos muito bobos mesmo. E talvez sejamos.
APOSTA NO ESQUECIMENTO
Quando o projeto de resolução foi aprovado, nós estávamos no início de maio. A pouquíssimos meses, portanto, do início da campanha eleitoral, na qual 11 dos 15 vereadores concorreriam à reeleição, dois (Neuzinha e Mazinho) disputariam a prefeitura, Nathan Medeiros (PSL) seria vice de Gandini e Max da Mata, o coordenador dessa campanha. Não por acaso a aprovação do projeto foi tão propagandeada por alguns deles.
Mas o fato é que, estranhamente, mesmo tendo sido aprovada em plenário no dia 6 de maio, a resolução nunca chegou a ser publicada no Diário Oficial, para adquirir valor legal e poder entrar em vigor já no ano que vem, quando começa a próxima legislatura. É uma formalidade necessária, mas deveria ser só isso: uma formalidade.
Contudo, os meses foram passando, o ano foi terminando, levando com ele o atual mandato, o assunto foi sendo esquecido... e só agora, no início de dezembro, a imprensa precisou “lembrar” aos vereadores que eles ainda precisavam aprovar e publicar a redação final do projeto, para que a mudança pudesse mesmo valer.
Quando um projeto é aprovado com emendas, ele precisa retornar às comissões correspondentes para ganhar redação final. Vamos deixar claro desde já: aprovar redação final de algo já votado em plenário é sempre um último passo considerado protocolar. O projeto já tinha sido aprovado. Ponto. A discussão de mérito já tinha sido esgotada em plenário, no momento em que o projeto foi votado e aprovado. Em qualquer casa legislativa, a aprovação da redação final normalmente leva poucos dias. Às vezes os parlamentares o fazem simbolicamente, dentro da mesma sessão.
Dessa vez, com esse projeto, as coisas foram diferentes na Câmara de Vitória. Para nossa surpresa, descobrimos que, a poucos dias do fim do mandato, os vereadores nem sequer haviam se dado ao trabalho de dar uma redação final à resolução. Estavam descaradamente (mas não declaradamente) apostando no esquecimento.
O PAPEL DE DALTO NEVES
Como o projeto tem impacto financeiro sobre o próprio orçamento da Casa, após a aprovação com emendas, ele seguiu para o escaninho do presidente da Comissão de Finanças, o vereador Dalto Neves (PDT), autor de um dos quatro votos contrários ao projeto e do pronunciamento mais veemente contra o corte de assessores na sessão de 6 de maio. Um primeiro detalhe muito intrigante foi a demora nesse encaminhamento: o projeto só chegou a Dalto em agosto, três meses após a aprovação em plenário.
Podem-se alegar dificuldades técnicas geradas pela pandemia, mas vejam bem: mesmo no pico da pandemia, a Casa não parou de modo algum. Nesses meses, vereadores tiveram tempo de sobra para se engalfinhar numa guerra política sem fim entre aliados do prefeito e oposição, envolvendo abertura de CPIs, comissões processantes, denúncias…
E, quando sobrou vontade política, chegaram a realizar uma sessão virtual em pleno sábado, em meados de julho (no pico da primeira onda), para aprovarem a toque de caixa o projeto da prefeitura que criou um auxílio emergencial municipal para moradores de baixíssima renda (um projeto altamente popular, que veio muito a calhar para todos eles, a dois meses da largada da campanha eleitoral).
Bem, o projeto chega a Dalto e o que é que ele faz? Absolutamente nada. Guardou-o em seu frigobar até dezembro. Vale lembrar que, durante a campanha, a Câmara tampouco interrompeu as sessões e os trabalhos. Chegaram até a votar um pedido (derrubado) de abertura de comissão para cassar o mandato do prefeito, no auge do processo eleitoral.
Passou a eleição, entramos em dezembro e nada. Após publicação do assunto aqui no último dia 9 e em outros veículos, Dalto foi cobrado pela imprensa. Depois de mais de sete meses de atraso e com todos os prazos clamorosamente estourados, pediu “calma”.
Ninguém até agora compreendeu qual era a grande dificuldade em dar linhas finais a um projeto que já fora aprovado, no mérito, sete meses antes. Não cabia mais rediscussão de mérito. Essa demora é ridícula, assim como toda a história. Essa redação final já deveria estar aprovada desde maio, dias após a aprovação do projeto de resolução em plenário.
Em 12 anos cobrindo a política estadual, eu nunca tinha visto nada parecido.
O PAPEL DE CLEBINHO
Após ter dado “prazo fatal” para Dalto, Clebinho designou outro relator para dar a redação final. Até que, na noite desta quinta-feira (17), alegando um tecnicismo, um formalismo regimental, um vício de iniciativa na proposição de uma das emendas aprovadas em maio, Clebinho anunciou o arquivamento do projeto de resolução. No próximo mandato, de 2021 a 2024, tudo segue como é hoje: 15 assessores por gabinete; verba de até R$ 36,6 mil.
Veja a nota oficial da Câmara:
Acatando parecer do procurador-geral da Câmara Municipal de Vitória, Tarcísio Corrêa, o presidente da Casa, vereador Cleber Felix (DEM), arquivou o projeto que reduzia o número de assessores na CMV.
De acordo com o parecer, a natureza da emenda inviabilizou o projeto de resolução, que deveria ser proposta pela Mesa Diretora com a assinatura de pelo menos três membros, o que não ocorreu.
O presidente ressalta que não tem nenhuma objeção à matéria, já que também assinou a proposta original, porém devem ser seguidos os trâmites legais para que esse tipo de decisão não seja questionada quanto à sua validade no futuro.
“EXEMPLO POSITIVO”???
A pergunta que fica é: ainda que o argumento técnico esteja correto (num apego extremo ao Regimento Interno que eles raramente demonstram), por que os nobres vereadores tiveram que esperar até o dia 17 de dezembro para constatar esse "problema"? Por que só “se deram conta disso” sete meses depois, só após a campanha eleitoral, e quando não dá mais tempo de corrigir os trâmites para que o projeto entre em vigor na próxima legislatura?
Não podemos senão concluir que se trata de um pretexto técnico e muito conveniente para quem não tinha o menor interesse desde o início em ver esse projeto aprovado; um filigrana regimental que poderia perfeitamente ser corrigido e contornado se houvesse a mínima vontade política.
O roteiro já estava todo escrito: pela maneira como o enredo tinha sido conduzido até dezembro, era evidente que tudo já estava armado para que se retardasse a publicação da resolução até o último instante, só para, na hora H, desfazerem o que já tinha sido feito, alegando um pretexto qualquer.
Mas havia ainda um lume de esperança de que dessa vez, só dessa vez, a Câmara nos surpreendesse positivamente (como parecia, só parecia, ter feito em maio). Nada feito. O previsível desfecho dessa trama só prova que, de onde menos se espera, é de onde não sai nada de bom mesmo.
“Economia”, escreveu Clebinho. “Responsabilidade”, alardeou. Nada disso. “Esperamos que a Câmara de Vitória se torne um exemplo positivo para casas legislativas em todo o Brasil”, chegou a publicar.
Desse jeito fica muito difícil.
Após esse ato final de escárnio com o cidadão, só nos resta esperar que na próxima legislatura os vereadores tenham mais respeito por quem os elegeu. Mas é como dizia o Doutor Ulysses a quem vinha a ele reclamar da baixa qualidade do Congresso Nacional: “Espera o próximo”.
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