A turma de 1972 da Faculdade de Direito da Ufes produziu algo muito raro: essa mesma “safra” deu ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) cinco desembargadores: Jorge Goes Coutinho (já aposentado), Manoel Alves Rabelo, Adalto Dias Tristão, Annibal de Rezende Lima e Ronaldo Gonçalves de Sousa. Colegas desde que eram calouros nos bancos acadêmicos da Ufes, os cinco cresceram juntos na carreira jurídica e foram contemporâneos no TJES. Até hoje, quatro deles já presidiram a Corte. A partir de quinta-feira (3), será a vez do desembargador Ronaldo. Aos 72 anos, ele vai suceder o atual presidente, Sérgio Luiz Teixeira Gama.
Na intimidade dos amigos, o próximo presidente do TJES gosta muito de cantar. Com corpanzil de tenor de ópera, tem voz grave e bonita. Sua especialidade são canções românticas. Agora, o tenor assume a batuta da orquestra, e a Justiça estadual vai dançar conforme a sua música.
Por isso, a coluna ouviu dois de seus colegas de juventude e de tribunal – Adalto e Annibal –, além do atual presidente, e perguntou: quem é, afinal, o homem e o juiz que comandará o Poder Judiciário do Espírito Santo pelo próximo biênio? Descubra abaixo.
ORIGEM: JUCUTUQUARA, SALESIANO E RIO BRANCO
Ronaldo Gonçalves de Sousa é um capixaba da gema e da ilha. Como conta o seu velho amigo Annibal, “ele faz parte da nação Jucutuquara”. De fato, foi no tradicionalíssimo bairro da Capital que nasceu e cresceu esse torcedor do Rio Branco, cujo estádio, durante sua juventude, ficava exatamente em Jucutuquara, no terreno que hoje abriga o campus do Ifes. “Ele frequentava todos os jogos”, garante Sérgio Gama.
Além do popular clube capixaba, Ronaldo é torcedor fanático do rubro-negro carioca, outro vínculo que o une fortemente a Gama. “Não é tão apaixonado quanto eu, mas também é apaixonado pelo Flamengo”, ressalta o atual presidente.
A infância de Ronaldo, segundo os relatos dos colegas, foi humilde e desprovida de luxos. O garoto vitoriense fez os cursos primário e secundário – correspondentes, hoje, aos ensinos fundamental e médio – em colégios também muito tradicionais: respectivamente, o Grupo Escolar Padre Anchieta, em Jucutuquara, e o Salesiano de Vitória, até hoje situado bem próximo ao bairro onde ele se criou.
Diferentemente de muitos que abraçam a carreira jurídica, o jovem Ronaldo não possuía padrinhos nem pai, avô etc. consagrado nesse meio. Assim, foi ele quem inaugurou o sobrenome Gonçalves de Sousa na magistratura estadual.
“Era de família classe média baixa. Todos da família tinham origem humilde”, conta o desembargador Adalto.
DURANTE A FACULDADE, COMÉRCIO E BRASÍLIA FURADA
Essa humildade toda se materializava, em carne e aço, no modelo do carro dirigido por Ronaldo para ir assistir às aulas no curso de Direito. “Ele tinha um carro muito velho! Era uma Brasília velha que ele só comprou no meio do curso. Não me lembro da cor. Só sei que ela tinha alguns furos na lataria, hahaha! Faltava dinheiro para consertar”, relembra Adalto, às gargalhadas.
“Todo mundo tinha muita dificuldade na vida. Era complicado. Dificuldade de emprego, de tudo. Era um período difícil. Então, o desembargador Ronaldo é um lutador, um batalhador”, define o amigo, retomando a seriedade.
Essa batalha começou cedo. Na adolescência, Ronaldo chegou a trabalhar como vendedor em uma loja de artigos diversos, que não existe mais, porém muito tradicional em Vitória naquela época, chamada Casa do Núbio. Ali ficou dos 14 aos 21 anos – de 1961 a 1968. Esse emprego ajudou-o a se manter enquanto cursava os dois primeiros anos da Faculdade de Direito. Em 1968, ele passa a dar expediente como bancário no Banestes, onde fica até 1974, logo após se formar.
A longa experiência como vendedor, coincidente com seu período de formação, talvez tenha ajudado a desenvolver um dos principais traços do perfil de Ronaldo: de acordo com os pares, ele é muito bom de papo!
“Ele gosta de conversar. Se você dá uma paradinha para conversar com ele, pode ter certeza que você vai passar um bom tempo ali”, “entrega” o amigo Annibal. “Não é um contador de piadas e anedotas. Ele gosta de falar sobre os fatos do dia, as coisas do dia a dia.”
Como aluno, o mesmo Annibal atesta que Ronaldo era um dos mais estudiosos daquela turma de 1972, uma das primeiras formadas no campus de Goiabeiras, onde funciona até hoje o curso e Direito da Ufes – até então, a chamada Faculdade de Direito ficava no Centro de Vitória. “Ele era um dos mais dedicados aos estudos.”
CARREIRA JURÍDICA: DE CLÁUDIO GUERRA A JOSÉ RAINHA
Depois da formatura da turma – tendo como patrono e paraninfo, respectivamente, os desembargadores Helio Gualberto e Homero Mafra –, Ronaldo iniciou-se na advocacia. De 1974 a 1976, atuou no escritório Dr. Namyr Carlos de Souza. Depois advogou para a Companhia Habitacional do Estado do Espírito Santo (Cohab/ES) até 1980, ano em que ingressou na magistratura estadual, como juiz substituto, após aprovação em concurso.
Ao longo dos anos, passou por comarcas como as de Mantenópolis, Afonso Cláudio e Conceição do Castelo, até chegar ao que os próprios amigos consideram o ápice da sua atuação como juiz de Direito, antes de chegar ao TJES: por muitos anos, Ronaldo foi o juiz titular da Vara do Tribunal do Júri de Vitória. Segundo relatos, ele se orgulha de ter sido um recordista: à frente dessa Vara, calcula ter presidido mais de 1,5 mil processos.
Pela legislação brasileira, só podem ser levados a júri popular casos em que o réu é acusado de ter praticado crime doloso contra a vida (assassinato intencional). Para citar só dois exemplos, Ronaldo presidiu o tribunal em casos emblemáticos que mobilizaram a sociedade capixaba, como o do ex-delegado Cláudio Guerra e o do ex-líder do Movimento dos Sem-Terra (MST) José Rainha, que teve como chefe da banca de defesa o advogado Evandro Lins, à época considerado o maior criminalista do Brasil.
Ronaldo também foi juiz eleitoral em várias oportunidades. Em 1996, como titular da 52ª Zona de Vitória, presidiu a primeira eleição do Estado com uso da urna eletrônica (Luiz Paulo Vellozo Lucas, então no PSDB, venceu a disputa para prefeito de Vitória).
“Era um dos juízes que mais conhecia as regras do Tribunal do Júri e foi um dos mais produtivos, um dos que mais realizou júris. Ele gostava de atuar nessa área. E teve uma atuação muito destacada no Tribunal do Júri de Vitória. Aqui ele se especializou e se dedicou por muitos anos a essa Vara. Presidiu casos difíceis, dos mais delicados, com sucesso e com mão firme”, rememora Adalto.
NO TJES: “MÃO FIRME”, MAS “CORAÇÃO GRANDE”
Em 2005, aos 57 anos, Ronaldo foi promovido a desembargador, na vaga de Paulo Nicola Copolillo, que se aposentou ao completar 70 anos – idade-limite, então, da compulsória. Ele foi escolhido como representante da classe dos juízes, pelo critério de antiguidade, em votação realizada pelos integrantes do Pleno. Naquele ano, o Espírito Santo era governado por Paulo Hartung (primeiro mandato). O TJES tinha outros dois colegas daquela turma de 1972 nas posições mais elevadas: o presidente era Adalto, enquanto o vice era Jorge Goes Coutinho.
De 2015 a 2017, durante a presidência do amigo Annibal de Rezende Lima no TJES, Ronaldo foi corregedor-geral da Justiça do Espírito Santo. No atual biênio (2018-2019), também sob a presidência de Annibal, ele é vice-presidente e corregedor do Tribunal Eleitoral Regional do Estado (TRE-ES). Desde 2017, preside a 3ª Câmara Cível do TJES.
E qual é o perfil do futuro chefe da Justiça estadual como pessoa e como juiz? Quem responde é Adalto, seu amigo há 52 anos:
“É uma pessoa muito séria, mas com o coração muito grande. É um grande amigo. Eu o reputo como uma pessoa do bem. Como magistrado, é um juiz rígido, firme, mas muito humano. Julga também colocando muita humanidade em seus julgamentos.”
O VOZEIRÃO E O BIGODÃO
A amizade continua até hoje. Além de frequentarem a casa um do outro, os remanescentes daquela turma de 1972 conservam uma religiosa tradição: todo ano, entre o fim de outubro e o início de novembro, reúnem-se em um restaurante ou na casa de um deles. O anfitrião do último encontro foi o próprio Ronaldo.
Essas ocasiões, revelam todos os ouvidos para este perfil, sempre acabam da mesma maneira:
“Todo evento que tem, pelo menos da nossa turma, em todas essas ocasiões ele termina a noite cantando”, relata Annibal. Adalto reforça: “Ele gosta muito de música e de ler poesia. Canta razoavelmente bem, inclusive em francês. Com aquele tamanho dele, tem a voz grave.” A fama chegou a Sérgio Gama: “Ronaldo gosta de cantar músicas românticas. Ele tem uma voz muito bonita”.
O repertório, declinado pelos amigos, inclui de boleros a sambas-canção. “São músicas antigas e românticas. Músicas da nossa época, como se diz”, conta Adalto.
Falando em antiguidades, fisicamente, além da já citada corpulência, a característica mais marcante do futuro presidente do TJES é o indefectível bigodão (sem barba), que inspira até gracejos dos amigos.
“Rapaz… esse bigode dele é muito antigo, acompanha o Ronaldo há muito tempo”, ri-se Adalto. “Só não consegui que ele me dissesse o nome da tinta que ele usa para pintar o bigode dele!”, brinca também Sérgio Gama.
DO INVERNO AO VERÃO: DE PEDRA AZUL A UBU
Entre as sessões no TRE e no TJES, as serestas com os amigos e os necessários retoques no imponente bigode, Ronaldo cultiva outras duas grandes paixões:
A primeira é o Sítio das Araucárias, sua propriedade em Pedra Azul. “Ele sobe todo fim de semana, exceto no verão. Aí sua preferência é por Ubu, onde mantém, há muitas décadas, uma casinha de veraneio e onde sempre passa o recesso de verão e o carnaval”, narra Gama.
No aspecto familiar, realça o mesmo Gama, seu sucessor no cargo leva vida reservada. Separado da primeira esposa, vive há 20 anos com Valéria Ribeiro Barreto. Tem três filhos (Rodrigo, Bruno e André) e dois enteados (Daniela e Vinicius).
OS VOTOS E OS DESAFIOS PARA 2020-2021
Para o biênio que enfrentará na presidência, Ronaldo terá alguns desafios. Um deles será o de preencher os dois assentos existentes, mas desocupados, no Pleno do TJES – há 30 cadeiras, mas só 28 preenchidas no momento –, algo que seus antecessores não conseguiram realizar, devido à crise econômica e, por consequência, às restrições orçamentárias do Poder.
A eleição de Ronaldo pelos pares, na próxima quinta-feira, será só homologatória. Sua posse está marcada para 12 de dezembro. Também seguindo a ordem de antiguidade, seu vice-presidente será o desembargador José Paulo Calmon Nogueira da Gama, enquanto o corregedor-geral será Ney Batista Coutinho.
Para a missão final de sua carreira (em 2022, ele atinge os 75 anos e a aposentadoria compulsória), os amigos desejam-lhe sorte.
“Tenho certeza de que o desembargador Ronaldo fará uma ótima gestão, pelo menos no que depender de mim”, afiança Gama.
“Estou seguro”, arremata Annibal, “de que o Ronaldo, mesmo enfrentando as limitações financeiras e orçamentárias, que continuam, do Poder Judiciário estadual, exercerá a presidência da Corte com muita eficiência e com muito brilho”.
Este vídeo pode te interessar
Todos torcemos por isso.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.