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Artesã revela a real história das bonecas Abayomis que serão tema de desfile

Foi pelas mãos de Lena Martins que a boneca ganhou forma no Rio de Janeiro, na década de 80. Ela desmistifica a lenda que diz que artesanato foi criado por mulheres negras escravizadas

Vitória
Publicado em 31/03/2022 às 13h32
A artesã Lena Martins, criadora das Abayomis, ao lado de uma boneca preta
A artesã Lena Martins, criadora das Abayomis, ao lado da maior Abayomi que ela já vez, a vovó Tuninha. Crédito: Ana Paula Alves

A história das Abayomis, que são bonecas pretas sem cola e sem costura, feitas apenas com nós de tecidos. Uma lenda conta que elas eram feitas por mulheres negras escravizadas, na época da escravatura brasileira, que para distrair crianças dentro dos navios negreiros rasgavam suas saias e faziam as bonecas. Porém, durante a pesquisa, os carnavalescos do Pega no Samba, Thais de Sá, Victor Faria e Vitor Vassale descobriram que não é bem assim.

Abayomi tem data de criação, criadora, e um contexto histórico que diz mais sobre resistência do que sobre resiliência, como diz a própria artesã que inventou as Abayomis, Lena Martins. A maranhense de São Luiz, que mora no Rio de Janeiro desde criança, criou a boneca nos anos 80, em meio à onda de afirmação da identidade negra e dos primeiros passos do movimento ecológico, de reaproveitamento de materiais. Por isso, fomos até a fonte, a Lena, para esclarecer muito bem toda essa história. E para que ela fale um pouco sobre a lenda que surgiu em torno de uma criação dela. Confira a entrevista!

Bonecas Abayomi
Bonecas Abayomi. Crédito: Acervo Pessoal Lena Martins

Como você recebeu a notícia de que as Abayomis seriam o enredo do Pega no Samba? Qual foi a sua reação?

Eu recebi a notícia no meio da pandemia. Tive um espanto! Eu sou artesã, faço artesanato. Nunca imaginaria esse lugar para uma boneca, o de estar sendo cantada, falada. É a valorização de um artesanato brasileiro contemporâneo. Do trabalho das mãos de uma artesã. Eu fiquei, inicialmente, espantada. Depois, fiquei com receio, fiquei lisonjeada e encantada. Como que uma boneca vai despertar o interesse de ser contada? Um artesanato brasileiro, ser contado assim na avenida? E o receio é: como isso vai ser contado? Pela voz do colonizador? Dá um medo, porque vira algo grande, e pode afirmar algumas versões negativas. E, é claro, imagine a honra de fazer um artesanato sem pretensão e, agora, mais de 30 anos depois, ser enredo de uma escola de samba. 

Da forma como o enredo e o desfile estão sendo construídos, o que você recomenda que o folião preste mais atenção na avenida?

Eu recebi, quando estava sendo estudado o enredo, alguns vídeos de comunicação da escola, que achei excelente. Mas eu não tenho nenhuma capacidade, nem pretensão, de dizer algo para se prestar atenção. Até porque eu só fui a um desfile de escola de samba uma vez na minha vida, embora eu more bem perto do Sambódromo do Rio (risos). Não tenho essa capacidade de dizer, acho que teria que ter uma prática maior de desfile.

Como você vê essa ligação entre as Abayomis e as escolas de samba?

Como Abayomi é um artesanato, uma boneca, que representa um corpo preto na ocupação de um espaço de pertencimento, dentro de uma sociedade, eu acho que tem tudo a ver com escola de samba. O samba e os sambas-enredo falam das nossas histórias, assim como Abayomi fala do que somos.

A artesã Lena Martins com uma de suas criações, a Abayomi
A artesã Lena Martins com uma de suas criações, a Abayomi. Crédito: Kátia Costa

Para quem não conhece, você poderia contar a história de como criou as Abayomis, englobando o contexto histórico da época?

Abayomi foi criada em 1987. Naquela época, aqui no Rio de Janeiro, lugar onde moro, foi um momento de criação de movimentos sociais muito fortes. Era um período de organização para uma marcha que paralisou o Rio de Janeiro, em 1988, que falava dos 100 anos da Abolição da Escravatura. Então, a preparação para isso estava acontecendo em 87. E, ainda em 87, foi o ano em que houve a organização para o primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras, em Valença (RJ). Eu, como artesã e coordenadora de animação cultural, trabalhando para a secretaria de cultura dentro de escolas, estava vivendo intensamente isso, nas reuniões, nos grupos, nessa descoberta de entendimento do que era o movimento negro e o movimento de mulheres. É dentro desse contexto que nasce a Abayomi.

Qual foi a sua principal intenção ao criar as bonecas?

Não existia uma intenção, existia um movimento natural. Eu, como artesã, sempre fiz artesanato, e fazia outros tipos de boneca. Tudo que eu estava vivendo naquele tempo, aprendendo junto com o movimento negro, abrindo a consciência para as questões que o movimento traz. Para a pauta do movimento negro, e também principalmente o que era discutido nos encontros de mulheres negras. A outra questão que acho que também vai junto é a busca de usar materiais reaproveitáveis. A Abayomi, como eu sempre fiz e incentivo, mas sei que a maior parte das pessoas não faz mais isso, é fazer a boneca a partir do que você tem e das sobras de retalhos. O que sobra de fábricas, confecções. Acho que era uma necessidade minha e do que a gente estava vivendo. Naquele ano, de 87, é quando eu começo a ter um pouco mais de consciência do movimento ecológico, do que vamos fazer com o lixo. Acho que não tinha intenção, mas foi uma reação minha, do meu corpo, e da minha habilidade de trabalhar com tecidos, malhas e retalhos, que nasceu a partir das minhas mãos uma boneca sem cola e sem costura, que era uma boneca preta.

Uma Abayomi, de Lena Martins
Uma Abayomi, de Lena Martins. Crédito: Acervo Pessoal Lena Martins

Depois de esclarecida a história da criação das bonecas, precisamos falar sobre a lenda de que as Abayomis teriam sido criadas em um navio negreiro. Diz que mulheres negras que foram sequestradas e trazidas para ser escravas no Brasil, na época da escravatura, teriam feito as bonecas com retalhos de roupas para distrair as crianças. O que você, que criou as bonecas, acha dessa lenda? De alguma forma acha que ela se assemelha ao real intuito de criação das Abayomis?

Eu acho que essa lenda é a voz do colonizador. Querendo trazer para as nossas criações, do povo negro e descendente, o pior lugar possível. Acho que isso é uma reprodução, sempre. Por que os livros didáticos, quando vemos uma representação do povo negro, na maior parte das vezes é com correntes, na pior situação? É para perpetuar isso, esse é o desejo. Não é diferente com Abayomi, querer levar para o pior lugar. Inventar uma história que tem algo de resiliência, de sacrifício, mas mesmo no sacrifício você faz algo legal. Acho que essa é a conversa do colonizador. É uma coisa muito perversa, inclusive. Abayomi não tem nada a ver com essa lenda, com esse pensamento. Abayomi é para fortalecer a autoestima de um povo.

Você virá desfilar pelo Pega? Já desfilou em alguma escola de samba?

Eu não vou desfilar. Eu tinha me organizado para ir, mas estou com um problema sério de saúde e pouca mobilidade, recebo ajuda dos meus amigos. Por essa razão, não vou. Desfilei uma vez em escola de samba, na Tradição, porque uma amiga comprou a fantasia e, na época, ela ficou muito doente e me deu a fantasia. Eu desfilei e achei uma coisa incrível, muito maravilhosa, desfilar na avenida! Mas foi só desta vez, nunca mais estive. Aqui no Rio, sou brincante do Bloco Boitatá, a vida toda, e também participo do Bloco Céu na Terra. Para mim, estava sendo uma coisa inusitada a possibilidade de participar de um desfile com o tema do trabalho que eu faço. É algo muito grande, impressionante, que nem dou conta de falar. É uma pena estar assim neste momento.

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