Textos: Diná Sanchotene, Guilherme Sillva, Mariana Perim e Siumara Gonçalves
Fotos: Arquivo pessoal
Lana de Holanda foi assessora de gabinete da vereadora Marielle Franco, que foi assassinada em março no Rio de Janeiro. A parlamentar era uma das militantes das causas LGBTs. Confira o depoimento de Lana sobre sua transição e preconceito no trabalho.
"Dentro da minha casa o ambiente era conservador, mesmo minha mãe não exercendo qualquer religião. Desde pequena tinha muito mais identificação com o universo considerado feminino: sempre gostei mais de ser amiga das meninas, de brincar de boneca, e todas essas coisas que se consideram como de menina.
Sofri bastante quando comecei a perceber que existia essa divisão social, e que apenas por ter nascido com um pênis eu estava proibida de fazer quase tudo que gostava. Pra mim foi um choque me perceber enquanto trans, pois eu vivia numa família conservadora e numa cidade também conservadora (São Gonçalo, Rio de Janeiro).
Não contei pra ninguém e tentei esconder ao máximo. Aos 24 anos, comecei a ficar muito triste, e depois me dei conta de que estava passando por uma silenciosa depressão. Ser encarada como 'homem gay' não era suficiente, não era quem eu era de verdade. E depois de começar a fazer terapia eu vi que o melhor caminho (ou o único caminho) seria realmente assumir pro mundo o que eu escondia há anos. Já tomo hormônio há dois anos.
Eu sempre quis dar aula, mas desde que me assumi trans vejo isso como um universo bem distante, quase impossível. Apesar da timidez, estar na frente de uma sala de aula, mesmo que pra apresentar um trabalho, sempre foi algo que me encheu de alegria, me motivava. Hoje eu fico pensando que se eu estiver na frente de uma sala cheia de alunos eu vou ser motivo de risada, infelizmente.
Eu estou matriculada no Serviço Social da UFRJ, mas estou afastada. Alguns professores não respeitavam meu nome social e meu gênero. Certa vez, durante o intervalo das aulas, uma outra estudante perguntou se eu trabalhava com teatro, por conta da minha aparência. Isso tudo foi fazendo eu me afastar daquele espaço.
O que me surpreendeu positivamente foi o acolhimento da minha turma na época. No primeiro semestre eu ainda não tinha transicionado, e voltei para o segundo semestre já tendo começado a transição de gênero, e todas elas e eles foram super acolhedores. Mas isso não se refletiu nos professores e alunos de outras turmas do mesmo campus.
Cheguei a trabalhar na Anistia Internacional, onde ocupei a função de assistente administrativa e recepcionista. Quando comecei a transição fui muito acolhida, o diretor da organização na época me chamou e disse que sabia que eu estava passando por uma transformação pessoal e que não era para eu ter medo. Saí de lá quando fui trabalhar com a Marielle Franco, que conhecia de vista por ela ser coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), e eu trabalhar na Anistia, que é uma ONG de direitos humanos.
Mas nunca fomos amigas ou tivemos contato próximo. Em 2016, durante a campanha, eu acompanhava de longe e tinha admiração pelos temas diversos que ela apresentava como proposta. Dias depois da eleição ela me mandou uma mensagem perguntando se poderia conversar comigo, me falou da ideia de ter um mandato coletivo formado por mulheres e que gostaria que eu integrasse a equipe como assessora, porque gostava do que eu escrevia nas minhas redes sociais e no HuffPost Brasil, onde sou colunista.
Fiquei muito honrada, porque eu acreditava que passaria o resto da minha vida como recepcionista na Anistia, e ainda assim era grata, pois a imensa maioria das pessoas trans estão fora do mercado formal de trabalho.
Quando cheguei na Câmara Municipal, como funcionária, tive que enfrentar toda aquela estrutura, pois até então eles nunca tinham tido uma assessora trans, nem sabiam o que era nome social. O primeiro crachá veio com meu nome de registro, que ainda não consegui mudar, e Marielle e a equipe jurídica do mandato tiveram que intervir para que eu tivesse o meu direito respeitado.
A Câmara do Rio é extremamente conservadora, e foi tudo muito difícil. Muitas vezes tive que fingir um sorriso pra conseguir transitar por aqueles corredores. Já ouvi ofensas de outros vereadores e de suas assessorias, apenas por estar ali, trabalhando como todo mundo. Certa vez, assim que começamos a trabalhar lá, uma assessora de um vereador conservador ficou muito incomodada por eu usar o banheiro feminino.
Marielle soube do incômodo dela e deixou claro, no plenário, que ali naquele espaço as pessoas trans teriam seus direitos respeitados e seriam tratadas como as cidadãs que de fato são. Pra mim foi um alento perceber a preocupação constante que ela tinha comigo e com as demais pessoas que são como eu.
Hoje estou novamente em busca de emprego. A morte de Marielle foi uma tragédia pessoal, algo muito dolorido que ainda é difícil de lidar e de entender. E além da perda dessa mulher que é tão importante pra mim, que me guiou politicamente e que confiou na minha capacidade, ainda veio a realidade de estar sem trabalho. Buscar emprego formal, para quem é trans, é uma tarefa quase surreal.
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A maioria das pessoas olha para a população trans e automaticamente nos julga como incapazes, como prostitutas, como seres que estão à margem da sociedade. Você pode se formar em pedagogia, mas nenhuma escola particular vai dar emprego para uma travesti ser professora. Existe muito preconceito e muita ignorância a nosso respeito. Os homens trans, por exemplo, são totalmente invisibilizados. É uma realidade triste, pois hoje em dia já temos certa visibilidade, mas muito pouca oportunidade."
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