Pai faz batismo para dar novo nome ao filho

A cerimônia marcou o "nascimento" de Miguel, que nasceu em um corpo de mulher. Família ainda teme a intolerância

Publicado em 21/06/2018 às 21h26
Atualizado em 29/01/2020 às 17h50

Textos: Diná Sanchotene, Guilherme Sillva, Mariana Perim e Siumara Gonçalves

Fotos: Fernando Madeira

No país que, em números absolutos, mais registra assassinatos de travestis e transexuais no mundo – segundo levantamento feito pela ONG Transgender Europe –, o apoio para o transexual tem que vir, primeiro, de casa. E mesmo que a princípio seja estranho para os pais, é possível, sim, dar amor, carinho e respeito ao filho.

Foi o que aconteceu na casa de Miguel Silva Rosário e Marco Antônio, filho e pai, respectivamente. "Na infância, eu já percebia alguns sinais diferentes. Sempre fomos muito grudados e sabia que iria respeitar o meu filho de qualquer jeito. Nunca tinha ouvido falar na palavra homem trans e, quando ele me levou na psicóloga que o atendia, fiz todas as perguntas possíveis porque queria entender. Quando saímos da primeira consulta, mudei o nome dele no meu celular e organizei uma festa de batismo para ele. Ali nascia o Miguel", lembra o pai.

A psicóloga Viviane Nunes, do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, explica que o jovem transgênero passa por vários momentos ao longo da sua vivência pessoal e social que contribuem para que ele perceba que o gênero com o qual se identifica é divergente do sexo biológico com que nasceu. "Durante esse processo, ele passa por conflitos e muitos sofrimentos até que se reconheça como transgênero. Depois, passa por momentos de angústias sobre como vai lidar com essa questão. Nesse momento é fundamental o apoio dos familiares e amigos em escutar e acolher a demanda dessa pessoa. É importante buscar atendimento e orientação junto à equipe multiprofissional de saúde", explica.

Viviane ressalta que é importante que a família acolha e escute a demanda da criança. "A questão de gênero é uma construção social. Através da cultura é dito o que é ser mulher e homem, como devemos nos vestir e nos comportar. Logo, quando a criança não se ajusta aos padrões da sociedade, não quer dizer que ela seja transgênero. Vale lembrar que a criança está em desenvolvimento constante e que a identificação ou não com o gênero correspondente ao seu sexo biológico vai ocorrer ao longo dos anos. Mesmo que ela já apresente alguns sinais é importante acolher, escutar e acompanhar a demanda desta criança".

A psicóloga diz que os pais não precisam temer o arrependimento dos filhos e que o importante é o apoio familiar e a busca por orientações multiprofissionais antes de iniciar a hormonioterapia.

"Da mesma forma que o paciente traz consigo seus questionamentos e sofrimentos, os pais também possuem o seu sofrimento, seus conflitos e dúvidas, medos e ansiedade. Os pais sofrem com o processo pelo o qual o filho está passando ou vai passar. É muito importante lembrá-los que a transição não vai mudar a personalidade do filho, mas que trata-se principalmente de uma mudança física que vai contribuir para minimizar alguns dos sofrimentos dessa pessoa. É possível que os pais precisem de um tempo para compreender e se adaptar às mudanças e, em alguns casos, é necessário acompanhamento psicológico destes pais. Existem também grupos de apoio que os pais podem participar e trocar experiências", orienta Viviane.

APOIO DA FAMÍLIA VIRALIZA NAS REDES SOCIAIS

Voltar para casa, se sentir acolhido e receber o carinho e o amor da família é fundamental para qualquer um. E, no caso de uma pessoa transexual, ter esse apoio é extremamente importante. Com um depoimento comovente postado sem pretensão em uma rede social, a maquiadora Karen Maria Reis, 29 anos, descreveu o reencontro que teve com o padrasto e a avó após passar anos longe de casa e ter transicionado. Mais do que isso, ela relatou sua surpresa ao ser chamada, por um senhor de 73 anos, pelo seu nome feminino, sem preconceito.

A jovem, que hoje mora em Linhares, saiu de Colatina aos 15 anos, após o falecimento da mãe. "Até então, nem assumir a homossexualidade eu tinha assumido. Vivia incubada", relata.

Logo após se mudar, Karen teve que passar por dois difíceis momentos de transição. "Quando somos transgêneros, saímos do armário duas vezes, porque na primeira achamos que somos homossexuais e só depois entendemos que não somos", explica.

Após muito tempo afastada, em abril deste ano, ela voltou a Colatina para visitar o padrasto e a avó. No reencontro com a família, Karen contou sobre o tempo em que ficou longe e tudo o que enfrentou. Foi nesse momento que ela percebeu a compreensão do padrasto. "Quando estávamos conversando, falei que tinha sido demitida do serviço. Foi quando ele virou e me disse que não acreditava que eu havia sido dispensada, com A, no feminino. Eu achei que tivesse ouvido errado, pois nunca tinha conversado com ele sobre nada disso, por ele ser uma pessoa extremamente fechada. Mesmo assim, ele me acolheu como sou", lembra, emocionada.

Após o encontro, Karen relatou a postura do padrasto nas redes sociais, gerando manifestações de apoio e respeito de quem lia o desabafo emocionado. Apenas no perfil pessoal, a postagem teve mais de 56 mil curtidas, 12,2 mil compartilhamentos e 2,8 mil comentários como: "Amor é isso! Independente de qualquer coisa ou forma" e "...se uma pessoa te ama, ela te ama independente de qualquer coisa".

"Os dois (avó e padrasto) me aceitaram. Além disso, eu e meu irmão, que não conversávamos há muito tempo, voltamos a nos falar. Meu padrasto me tratava normalmente pelo meu gênero antigo, até quando voltei para casa vestida como sou agora".

SER TRANS NÃO É DOENÇA

A aceitação de pessoas trans na própria família é um dos primeiros passos para o fim do preconceito. Afinal, é dentro de casa onde há a construção inicial de caráter e valores, além da educação inicial de cada indivíduo.

Recentes entendimentos de organismos internacionais a respeito da transexualidade podem ajudar a mudar a percepção da população em geral sobre as pessoas trans. Portanto, trata-se de conquistas importantes para o enfrentamento ao preconceito.

Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a transexualidade como um transtorno mental, segundo a nova edição da Classificação Internacional de Doenças (CID). A última revisão desta norma havia sido feita há 28 anos.

Até agora, as pessoas que não se identificavam com o sexo que lhes foi atribuído ao nascer eram consideradas doentes mentais pelos principais manuais de diagnóstico. Mesmo com a alteração feita pela OMS, pessoas trans poderão obter ajuda médica se assim desejarem.

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