De um lado, o chefe do Executivo federal inquire: “Vamos lá, qual você vai tomar? Vai tomar Coronavac?”. De outro, um ministro de Estado responde: “não, eu vou ver se tem a outra lá”. O diálogo travado entre Jair Bolsonaro e Fábio Faria, que comanda a pasta das Comunicações, na tradicional live de quinta do presidente, ilustra com precisão um comportamento perigoso que vem se espalhando entre a população brasileira em meio à pandemia de Covid-19: a tentativa de escolher a marca da vacina que recebe.
Diante da desinformação e das teorias da conspiração, milhares de pessoas têm adiado a vacinação ou dado meia volta, já nos postos de saúde, quando descobrem que o imunizante ofertado não é o desejado. Além de uma ameaça à proteção individual, a postura coloca em risco o controle da crise sanitária no país, uma vez que a redução do número de novas infecções e de mortes só será alcançada com a imunização em massa. Cada indivíduo que rejeita a aplicação, estando apto a recebê-la, ajuda não apenas o vírus a continuar a circular, como também contribui para que surjam novas variantes, mais ágeis e agressivas. Vacina, mais do que um benefício pessoal, é um compromisso coletivo.
Esses são os dois argumentos principais para condenar o chamado “sommelier de vacina”, quem acredita que pode, como os especialistas em vinhos nos restaurantes, selecionar a opção mais apropriada em um vasto cardápio, que harmonize melhor com suas predileções. Mas há outros argumentos, entre eles o de que simplesmente não existe um vasto cardápio. Apenas quatro fabricantes fornecem doses para o Plano Nacional de Imunização brasileiro, incluindo a recém-chegada Janssen.
Todos eles, sem exceção, foram testados e retestados por cientistas, com revisão por pares, e aprovados por órgãos de vigilância sanitária no Brasil e no mundo. São perfeitamente eficazes e seguros, sobretudo para diminuir as chances de internações e mortes. Não é inteligente, portanto, basear-se em critérios pessoais, recomendações de parentes ou supostos estudos compartilhados pelo WhatsApp para preferir uma vacina e recusar outra.
Nem mesmo os graus de cobertura apontados pelos laboratórios devem ser critérios de avaliação, porque porcentagens diferentes, na maioria dos casos, indicam apenas métodos distintos de análise. Mais do que isso, os imunizantes hoje em aplicação no Brasil têm se mostrado ainda mais eficientes na “vida real” do que os resultados apresentados em estudos clínicos.
O comportamento perigoso e ignorante de escolher a marca da vacina já começa a afetar a cobertura vacinal brasileira, tanto no avanço da primeira dose, quanto da segunda dose. Após a campanha de difamação que afetou a adesão à Coronavac, encampada até mesmo pelo ocupante do Planalto, agora é a AstraZeneca que sofre com a rejeição, baseada em efeitos adversos leves ou raros.
No Espírito Santo, mais de 12 mil pessoas aptas a receber a segunda aplicação não voltaram aos postos de vacinação. Mais grave ainda, 65% deles são idosos com mais de 60 anos, mais propensos a casos graves da doença. Em todo o Brasil, são 600 mil pessoas que não retornaram para a dose de reforço do imunizante produzido pela Fiocruz.
Apesar de ter conseguido recentemente imprimir um ritmo mais acelerado à campanha de imunização, o Brasil ainda briga no mercado global para garantir doses suficientes para todos. Mesmo sem a escassez, o país não poderia se dar ao luxo de permitir que cidadãos escolham o imunizante que querem tomar. Nesse ponto, também é condenável a medida adotada por algumas prefeituras de revelar os laboratórios das doses ofertadas, ao abrirem agendamento de primeira dose. A melhor vacina é aquela disponível, independentemente da marca.
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