Durante a campanha, o candidato Jair Bolsonaro surfou na onda de duas grandes bandeiras dos brasileiros insatisfeitos com a corrupção, a derrubada da chamada velha política e o apoio à Operação Lava Jato. Não à toa, o ex-juiz Sergio Moro, o garoto-propaganda da grife, foi exibido como troféu. Ao contrário do candidato, o presidente Bolsonaro mostrou que não comunga do mesmo discurso. A guinada, facilmente enquadrada como estelionato eleitoral, começou com o toma lá, dá cá com o Centrão e tem seu ápice agora, com a declaração do chefe do Executivo de que pôs fim à força-tarefa.
A fala veio em tom de blague, ao ser questionado sobre a indicação de Kassio Nunes para o STF, vista até mesmo por seu eleitorado mais fiel como um acordo, “com o Supremo, com tudo”, para enterrar a operação. “Eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo”, disse Bolsonaro. É um cavalo-de-pau ideológico se comparado ao tuíte do recém-eleito presidente, em novembro de 2018 , em que afirmou que “os que hoje se colocam contra ou relativizam a Lava Jato estão também contra o Brasil e os brasileiros. Todo apoio à operação que está tirando o país das mãos dos que estavam destruindo-o!”
O anunciado velório da operação, mesmo que seja apenas ironia, acena tanto para novos aliados do presidente, ala do Congresso que teme avanços da operação, quanto para os seguidores cativos que acreditam cegamente na higidez de Bolsonaro. Fora do campo das conveniências políticas, no entanto, a declaração não pode ser lida como mera piada. Em primeiro lugar porque Bolsonaro não é dono da canetada que decretaria o encerramento da força-tarefa. A prerrogativa é da PGR. Em segundo, porque a Lava Jato não existe para investigar crimes restritos ao governo federal. Nem mesmo existe para elucidar malfeitos apenas de agentes públicos. A operação é uma iniciativa de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro em sentido lato. Basta lembrar seu início, com foco em organizações criminosas lideradas por doleiros. Depois é que as evidências apontaram para esquema envolvendo a Petrobras, e o resto é história.
Mas, embora o presidente não tenha o poder de sepultar a Lava Jato, ele tem recursos para minar suas energias. Não somente tem, como já se utilizou de alguns expedientes com esse propósito, conforme as investigações aproximaram-se de familiares, amigos e aliados. Bolsonaro transferiu o Coaf do Ministério da Justiça para o Banco Central, impondo amarras ao funcionamento do órgão cujo monitoramento de movimentações financeiras atípicas rendeu inúmeras provas à força-tarefa. Também tem histórico de interferência em outros órgãos de controle, como a Receita e a PF. A nomeação para a PGR de Augusto Aras, crítico do chamado lavajatismo, também é lida como movimento para esfacelar a operação. Agora, entram na conta a indicação de Kassio Nunes e a afirmação cristalina de Bolsonaro.
Por enquanto, as investigações estão de pé. No mesmo dia em que disse ter acabado com a operação, a Lava Jato lançou sua 76ª fase no Rio de Janeiro. Uma semana antes, o ex-advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, conhecido por abrigar Fabrício Queiroz em sua casa em Atibaia (SP), tornou-se réu em uma das frentes da força-tarefa. No STF, onde correm 29 inquéritos atualmente, a decisão de devolver o julgamento de ações criminais para o plenário da Corte também é vista como vitória da Lava Jato.
Mas fato é que o futuro da força-tarefa é incerto. Aras defende que a operação em Curitiba não tenha mais prorrogações a partir de janeiro, prazo inexequível para as mais de 300 investigações em aberto. A frente de São Paulo foi encerrada em setembro com indefinição sobre o rumo das apurações. A Lava Jato ainda não morreu, mas agoniza.
Apesar das dezenas de condenados e dos fartos recursos devolvidos aos cofres públicos, na casa do bilhão, a Lava Jato enfrenta sérias críticas - muitas justificadas, outras apenas convenientes - de punitivismo e parcialidade. A censura aos métodos empregados deve ensejar ações de correção de rumos e penalizações a eventuais excessos, mas não o fim da operação. Muito menos por membros do Executivo, que não devem ter qualquer ingerência sobre a matéria. A afirmação de que não há corrupção no governo só será plenamente crível se as instituições democráticas estiverem funcionando como manda o figurino, de maneira independente e harmônica.
CORREÇÃO: A cidade em que o ex-advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, abrigou Fabricio Queiroz é Atibaia (SP), e não Ibatiba, como informado anteriomente de maneira equivocada. O texto foi corrigido às 8h02 do dia 09/10/2020.
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