O Brasil galopa em direção à marca de um milhão de infectados pelo novo coronavírus. Ao invés de encarar a realidade e evitar a escalada nas mortes, o governo federal decidiu fabricar um mundo paralelo ao omitir informações sobre o avanço da doença. No pior momento da crise até aqui, o país encontra-se na situação absurda de discutir não as ações para mitigar os impactos da pandemia, mas a falta de transparência dos dados que permitem a tomada de decisões.
Os atrasos, a publicação de balanços conflitantes e a ocultação de estatísticas trouxeram uma nuvem de suspeição sobre o Ministério da Saúde que custará a se afastar. Nos discursos oficiais, as desculpas foram dos problemas técnicos com o painel que compila as informações à dificuldade para consolidar dados com Estados. Nada colou, até porque a guinada teve início com a determinação do presidente Jair Bolsonaro de adiar o balanço diário para as 22h, justificando que “acabou matéria do Jornal Nacional”.
As suspeitas de maquiagem dos dados se acumulam. Apuração do Estado de S. Paulo aponta que também partiu do presidente um pedido para que o número de mortos pelo coronavírus fique abaixo de mil por dia. A saída, confirmada pelo próprio ministério em coletiva na segunda-feira (8), é separar os óbitos ocorridos nas últimas 24 horas das mortes de datas anteriores, mas apenas confirmadas naquele dia por atrasos nos exames.
A pressão por essa mudança na metodologia de contagem atingiu até a Agência Brasileira de Inteligência, que produz relatórios que auxiliam o Planalto. Foi com base em dados sólidos que a mesma Abin alertou a presidência sobre a eficiência do isolamento social, a falta de leitos UTIs e a elevada subnotificação de casos de infectados e mortes por insuficiência de testes. Os avisos foram repetidamente ignorados por Bolsonaro.
O Ministério da Saúde recuou em alguns dos erros recentes e prometeu para esta terça-feira (9) uma nova versão revista e ampliada do painel nacional da Covid-19. Se confirmadas, algumas mudanças prometem mais clareza sobre a dinâmica da pandemia, como o intervalo sobre manifestação dos sintomas e a morte e as estatísticas sobre represamento de exames. No entanto, outra ameaça ainda maior joga por terra os votos de mais transparência. Nos planos da pasta está considerar apenas as mortes por Covid-19 confirmadas em atestados de óbito, o que pode camuflar a curva da epidemia no país e dificultar a adoção de medidas pelos gestores.
A briga do governo Bolsonaro com os fatos é um modus operandi da gestão. Já no primeiro mês de mandato, houve tentativa de barrar divulgação de dados com mudanças na Lei de Acesso à Informação, derrubadas pelo Congresso. Neste mês, o governo ampliou o sigilo a pareceres emitidos por todos os ministérios que forem enviados para orientar a Presidência na sanção ou veto de projetos. Em meados do ano passado, Bolsonaro tachou de mentirosos os relatórios do Inpe que indicavam aumento nas queimadas na Amazônia. Ameaçou filtrar os dados antes da divulgação e exonerou o diretor do órgão.
Em uma democracia, a transparência aos dados públicos é a regra, e o sigilo é uma exceção. Está na lei federal que Bolsonaro tentou esgarçar. E lei não é mera carta de intenções. As tentativas de manipulação das informações sobre a pandemia, uma espécie de pedalada sanitária, já ensejaram ações na esfera jurídica, com movimentações do Ministério Público, de partidos políticos e da sociedade organizada, que já desembarcaram no STF.
O Brasil já registra mais de 37 mil mortes pelo novo coronavírus. A melhor forma de encarar a crise não é mascarar seus números, mas escancará-los. E a democracia brasileira é madura o suficiente para não aceitar a atitude dolosa do Planalto. Tal como a Hidra de Lerna mitológica, ao tentar cortar a cabeça do monstro que o incomodava, Bolsonaro fez nascer várias outras no lugar. Secretarias estaduais, Congresso e imprensa criaram plataformas independentes para dar ampla divulgação às informações sobre a Covid-19, que são públicas, não do governo.
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