A tradição cristã prega que os ofendidos ofereçam a outra face. Mesmo em meio à civilidade que se esvai no ambiente político brasileiro, a confirmação de que o presidente Jair Bolsonaro foi infectado pelo novo coronavírus não pode ser estímulo a revanchismos. Familiares e amigos de mais de 67 mil brasileiros mortos desde o início da pandemia viram suas perdas serem tratadas com desprezo pelo chefe da nação, mas a situação exige a grandeza que se esperava do presidente.
E precisa definitivamente servir de lição para aquela que já é considerada uma das principais lideranças negacionistas do planeta. A Bolsonaro se deseja plena recuperação, acompanhada de um maior comprometimento com o enfrentamento sério da doença. Espera-se que ele melhore, portanto, em todos os sentidos possíveis.
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Afinal, a contaminação de Bolsonaro não pode ser dissociada de seu comportamento negligente, um mau exemplo para a população de um país que não impunemente está colecionando alguns dos piores números de mortos e infectados no mundo.
Aguarda-se ansiosamente uma mudança de atitude, mas já no anúncio oficial da situação de saúde do presidente as derrapadas foram mais uma vez impressionantes. Causou estranhamento principalmente que um presidente que tem evitado tanto a imprensa, priorizando as próprias lives, tenha convocado uma microcoletiva para informar ser um portador do novo coronavírus, expondo os profissionais de pelo menos três veículos de comunicação à contaminação. Ao tirar a máscara, no fim da entrevista, desnudou-se o Bolsonaro de sempre.
O mesmo Bolsonaro que no último dia 4 de julho confraternizou sem o menor cuidado com o embaixador dos Estados Unidos e outros convidados, para celebrar o Dia da Independência daquele país, ainda o campeão mundial de mortes. O mesmo Bolsonaro que, cinco dias antes de testar positivo para Covid-19, reuniu seis pessoas numa live, em ambiente fechado, na qual ficaram registrados sua tosse e o contato físico com alguns dos participantes.
O mesmo Bolsonaro que afirmou não ser coveiro, que soltou um "e daí" ao ser questionado pelo número de mortes no país. A sucessão de falas de desdém do presidente quanto às perdas da pandemia dariam um livro de citações, um compêndio da falta de sensibilidade do governo federal com a maior crise sanitária de nossa história recente.
Mas, cabe o reforço, não se deseja o mal; oferecer a outra face é também não incitar reações de seus apoiadores mais ferrenhos, aprofundando o fosso que divide o país. Bolsonaro precisa encarar essa provação como um momento de virada.
Está, contudo, surfando a onda para promover o tratamento com hidroxicloroquina, medicamento ainda sem comprovação científica, mas com uso permitido sob orientação médica. A ideologia ainda grita, quando o presidente deveria aproveitar a situação para ser enfático quanto às medidas que podem frear a disseminação do vírus, ou seja, tudo o que não pregou nem fez até agora: o distanciamento social e o uso de máscara.
Sobre as máscaras, tomou uma atitude diametralmente oposta dias antes, ao vetar a obrigatoriedade do uso em órgãos e entidades públicas e em estabelecimentos comerciais, industriais, templos religiosos, instituições de ensino e prisões. Um desserviço de caráter oficial.
Também há dúvidas se a infecção do presidente está mobilizando cuidados mais adequados entre os funcionários do governo que tiveram contato com ele nas últimas semanas. Houve relatos de ministros que realizaram testes, mas não se sabe se seriam os apropriados. O Palácio do Planalto pode se tornar novamente um foco da doença, e não parece haver preocupação com protocolos para evitar que mais pessoas se contaminem. Mais um mau exemplo.
Bolsonaro se mostrou desde o início da pandemia despreocupado com a "gripezinha", menosprezando o cuidado com ele mesmo e com aqueles que o rodeiam. Não faltaram abraços, apertos de mão, aglomerações nesses quatro meses em que o mundo se colocou em transe.
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As orientações científicas internacionais foram desprezadas, ministros da Saúde não se mantiveram no posto no momento em que mais se precisou de gestão sanitária. A doença de Bolsonaro não é o último capítulo dessa triste saga, mas pode ser o início de ação mais racional do seu governo para atravessar essa calamidade. Se não valer para ele, que pelo menos sirva de exemplo para os brasileiros de que a vida ainda não voltou ao normal.
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