Em março passado, que neste 2020 tumultuado parece ter ocorrido em outra era, o presidente Jair Bolsonaro fez a acusação considerada até então a mais grave contra o sistema eleitoral brasileiro, na fatídica viagem aos Estados Unidos em que 23 integrantes da comitiva testaram positivo para a Covid-19, antes mesmo da declaração de pandemia pela OMS.
Bolsonaro afirmou, então, a uma plateia internacional, que tinha provas de que fraudes impediram a sua vitória já no primeiro turno, em 2018. Evidências essas que nunca foram apresentadas, e a polêmica acabou sendo ofuscada pela grande reviravolta mundial provocada pelo novo coronavírus. Muitas águas rolaram desde então.
E eis que, neste 15 de novembro eleitoral, a tensão acabou marcando a noite de apuração. Os eleitores brasileiros, acostumados e orgulhosos dos resultados rápidos das eleições desde a instituição da urna eletrônica, que começou a ser usada de forma experimental em 1996, testemunharam um atraso de três horas.
Nas eleições municipais de 2020, houve uma mudança de protocolo na apuração: antes cada TRE fazia a contabilização dos votos e os enviava para Brasília; neste domingo, as juntas apuradoras passaram os votos diretamente para o TSE, centralizando o processamento, o que aumentou o tráfego e provocou a lentidão. O timing para um problema dessa natureza, embora facilmente contornável, como acabou sendo, não poderia ter sido pior.
A decisão pela centralização foi tomada para reduzir custos, algo até mesmo aceitável do ponto de vista financeiro em um país que ainda patina para conseguir algum equilíbrio fiscal. Como as 27 unidades da federação precisavam renovar seus equipamentos de totalização, optou-se pela economia de concentrar tudo em Brasília.
Em tempos menos politicamente conturbados, o atraso seria notado, mas passaria incólume às teorias conspiratórias que ganham força para minar a credibilidade do sistema eleitoral, mais especificamente da urna eletrônica.
Tanto que foram registrados ataques hackers a servidores da corte eleitoral, imediatamente dissociados dos problemas na apuração, que estão sendo investigados como operações coordenadas na guerra para desacreditar a Justiça Eleitoral.
Bolsonaro, na manhã desta segunda-feira (16), voltou a colocar o voto eletrônico em xeque, um dia depois de testemunhar duras derrotas de candidatos dos quais se prestou a cabo eleitoral, tanto nos executivos quanto nos legislativos municipais. "Nós temos que ter um sistema de apuração que não deixe dúvidas. É só isso. Tem que ser confiável e rápido. Não deixar margem para suposições", declarou.
Bolsonaro coloca lenha em uma fogueira que nunca deveria ter sido acesa. Insiste em um retorno descabido ao voto impresso, chafurdando em um populismo que coloca em dúvida até mesmo a sua trajetória na política. Afinal, se o voto eletrônico é tão amaldiçoado, sua família repleta de eleitos em cargos públicos com o uso da tecnologia teve sempre a sorte de escapar das fraudes.
Mas o êxito eleitoral do clã Bolsonaro é o de menos, grave mesmo é contribuir para que nuvens tão pesadas de desconfiança se sobreponham ao processo democrático nos últimos 20 anos no país.
Não houve, desde a implantação do voto eletrônico, eleições concretamente contestadas. Não há fraudes confirmadas, auditorias são feitas regularmente, inclusive com observadores internacionais. Questionamentos podem ser feitos, mas precisam ter fundamentos, não se apoiarem em meros desvarios.
Não se exime o TSE, contudo, das suas responsabilidades no episódio: o processo eleitoral precisa ser irretocável a cada dois anos, e são inaceitáveis também os demais problemas registrados nas tecnologias que foram adotadas para facilitar a vida do eleitor, como o e-título. Se o novo procedimento de apuração exigirá que ela seja mais longa do que o país está acostumado, que isso seja plenamente planejado, para não haver sobrecarga de servidores. Os ajustes financeiros para reduzir custos precisam estar cercados de transparência e de planos de redução de danos.
Não é somente o Brasil, o mundo atravessa a era da desconfiança. As eleições norte-americanas, com sua apuração arrastada, trouxeram novo vigor às teorias conspiratórias, alimentadas pelo próprio presidente derrotado.
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O atraso da apuração brasileira será usado politicamente de todas as formas para desacreditar o processo eleitoral, um ato que beira a covardia por sua inconsistência. A falha não comprometeu o resultado, e mesmo que tanta gente mal-intencionada se aproveite disso, a democracia brasileira é sólida e plenamente capaz de se fortalecer com esses reveses.
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