O governo federal parece uma criatura mítica de duas cabeças nas ações para mitigar os impactos do novo coronavírus no Brasil. Por um lado tem postura firme na adoção de medidas sanitárias, orquestradas pelo Ministério da Saúde. Por outro, ainda patina na outra esfera da crise desencadeada pela pandemia, a redução da atividade econômica. O atraso do Planalto em transformar intenção em realidade, especialmente nos programas de amparo às camadas mais vulneráveis da população, fez ressuscitar o lema do sociólogo Betinho para cobrar celeridade: quem tem fome tem pressa.
Milhões de brasileiros que viram sua renda esfarelar com a Covid-19 já estão com bolsos e estômagos vazios há dias. “A gente vai tomando água para passar a fome”, relatou Ester Tomé da Silva, ambulante de Cariacica, na Região Metropolitana de Vitória, que na quarta-feira (1º) tinha apenas um pacote de biscoitos para dividir com os filhos. No mesmo bairro, dezenas de moradores têm sobrevivido graças à solidariedade.
No papel, o Executivo nacional tem respostas acertadas para Ester e outros cidadãos como ela. A principal delas é o auxílio de R$ 600 para trabalhadores informais, autônomos e MEIs, que vai atender mais de 50 bilhões de pessoas por três meses. A concretização dos planos, no entanto, não vem com a mesma urgência e diligência vista no combate ao coronavírus no front médico desde que a OMS declarou a pandemia, em 11 de março. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na quarta-feira (1º), a renda mínima emergencial está empacada pela burocracia.
Vencida a papelada, o governo terá outras montanhas a escalar para fazer o dinheiro chegar às mãos de quem precisa. E é aqui que a demora pode se transformar em tragédia. O desafio não é apenas definir quando o benefício será pago, mas também como ele será recebido.
Cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgados nesta semana alertam que 11 milhões de pessoas que atendem aos pré-requisitos do programa estão fora do radar do governo e correm o risco de ficar sem amparo. Esse número pode ser ainda maior, se for confirmada a ampliação do auxílio, já aprovada no Senado, que estende o direito a mais 30 categorias, como motoristas de aplicativo, caminhoneiros, pescadores, feirantes, garçons, artistas e atletas.
A maioria dos potenciais beneficiários integra o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), banco de dados sobre as famílias brasileiras em situação de pobreza e extrema pobreza que alimenta, por exemplo, o Bolsa Família. Para esses, Bolsonaro promete que o coronavoucher, como foi apelidado o auxílio, começa a ser depositado na semana que vem.
No entanto, pessoas que se viravam bem na informalidade antes da pandemia viram sua renda drasticamente reduzida ou mesmo zerada. São manicures, pedreiros, artesãos que agora compõem a categoria dos “novos pobres”. Para essa fatia da população, não há nem cronograma de pagamento nem detalhes sobre como serão localizados e cadastrados.
O governo aventa a criação de uma plataforma digital para inscrição e futuro cruzamento de dados com outros setores, como Receita Federal e INSS, para evitar fraudes. Mas há uma imensidão de brasileiros sem acesso à internet e sem conta em bancos.
O sucesso do programa vai depender da adesão dessa nova fatia de vulneráveis. Para abarcar o maior número possível de pessoas que estão à míngua, o governo federal terá que garantir uma capilaridade inédita em suas políticas de transferência de renda.
A pandemia é global, o programa de renda mínima é nacional, mas os desafios para aplicá-lo serão locais. É preciso estreitar laços institucionais com governos estaduais e municipais, com ONGs e líderes comunitários. Como se trata de uma medida de proteção social, que garante comida à mesa, perder tempo para viabilizá-la significa perder vidas.
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