O percurso retórico que o presidente Jair Bolsonaro enveredou nesta terça-feira (10), um dia após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidir pela interrupção dos testes clínicos da CoronaVac, é mais um componente a delinear o perfil de um governante visivelmente desgovernado. Alguém que deveria ter a postura de um líder, mas não consegue se despir do bufão - nesta mesma terça-feira conseguiu até mesmo insinuar uma ameaça de guerra aos EUA em um discurso.
Pela manhã, ele estava animado: "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha". A afirmação, inundada em soberba e alegria inoportuna, ecoou quando o presidente comemorou a decisão da Anvisa em um comentário do Facebook. Além de expor a insensibilidade com as mais de 162 mil mortes no país neste infeliz ano de 2020, a declaração também ofende o próprio voluntário dos testes, que perdeu a vida em circunstâncias, segundo confirmação da direção do Instituto Butantan, alheias à vacina. E igualmente trágicas.
O que Bolsonaro ganhou? O percalço da vacina só dá a vitória a um personagem nesta tragédia pandêmica de 2020: o novo coronavírus. A derrota é da sociedade, que continuará sofrendo não só pelas perdas para a Covid-19, mas pela decadência social decorrente da impossibilidade de um país produzir riquezas com todo o seu potencial. O desenvolvimento de uma vacina eficaz, sem riscos à saúde, é a porta aberta para a retomada econômica tão aguardada e defendida pelo próprio presidente.
A frase despropositada soa também como uma forma indireta de mencionar a derrota de seu notório aliado norte-americano nas eleições, na qual o governo brasileiro cumpriu um papel vexatório de cabo eleitoral, conduta ofensiva à tradição diplomática brasileira. Bolsonaro coleciona vitórias fantasiosas, enquanto tenta fugir das derrotas que a realidade impõe ao seu governo.
Nesta nova batalha da guerra da vacina, Bolsonaro se considera vitorioso por uma decisão cercada de controvérsia. Em outubro, quando malogrou o acordo anunciado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, para a compra de 46 milhões de doses da CoronaVac, a politização da imunização tomou corpo. Agora, a Anvisa, um órgão de Estado, está sob suspeita de aparelhamento, ao decidir de forma assoberbada pela suspensão dos testes.
A cúpula da Anvisa afirma que foi uma decisão técnica, acusando o Instituto Butantan, responsável pela produção da vacina em parceria com a chinesa Sinovac Biotech, de não ter fornecido informações suficientes sobre o registro de um "evento adverso grave", que veio a ser a morte de um dos voluntários. E não procurou o Butantan para se aprofundar.
Um atropelo que, nas circunstâncias de politização da vacina, arrisca ter sido deliberado. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que acompanha o estudo e também tem a prerrogativa de interromper os testes caso haja ameaça confirmada, inteirou-se dos fatos com o Butantan e decidiu que não havia a menor razão para a suspensão.
No fim da tarde desta terça-feira, o Comitê Internacional Independente, que analisa os estudos da CoronaVac, emitiu parecer pela retomada dos testes no Brasil.
Não bastassem os prejuízos concretos da suspensão, jogando ainda mais para frente no calendário a imunização contra o coronavírus, esses movimentos atabalhoados do governo podem minar a credibilidade da própria vacina, em função de uma disputa política com o governador João Doria que deveria ficar resguardada para 2022. Ironicamente, o governo ignora até mesmo vacinas não chinesas, como a da Pfizer, que tem se mostrado promissora. É, novamente, a desmoralização da ciência, a ponto de incitar na população uma desconfiança fora de hora sobre a segurança da imunização.
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Falta a Bolsonaro a galhardia dos grandes estadistas, e a força dos grandes governantes, diante da adversidade. É a lição que se tira desta terça-feira caótica, na qual um presidente comemorou o possível fracasso de uma vacina, a maior esperança para o retorno à alguma normalidade social no planeta. Um presidente da República, que deveria zelar pela saúde da população, mas que repetidamente minimiza as perdas para a doença. O Brasil está carente de um presidente mais sensível aos dramas do seu povo, mas infelizmente para Bolsonaro, com seu reducionismo crônico, esse só pode ser um anseio de um "país de maricas".
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