Jair Bolsonaro não se cansa de politizar a pandemia do novo coronavírus. Não há saldo de mortos, argumento científico ou evidência empírica que impeça o presidente de seguir atropelando a realidade para sustentar sua narrativa ideológica. Tem sido assim com a briga com Estados, municípios, STF e Congresso sobre medidas de isolamento e foi assim com uma fala do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, convenientemente distorcida para se encaixar em uma defesa da volta à normalidade.
É lastimável, mas era até esperado, portanto, que Bolsonaro aproveitasse um deslize da autoridade sanitária para vender seu peixe. Nesta semana, a líder técnica da OMS, Maria Van Kerkhove, afirmou que há indícios de que a transmissão da Covid-19 por pacientes sem sintomas da doença seja “rara”. Dada assim, sem maiores explicações, a declaração foi criticada por pesquisadores de todo o mundo. Não por ser inverídica, mas por soar ambígua.
Como já amplamente esclarecido, é necessária a diferenciação entre pré-sintomáticos (que ainda não têm sinal da doença, mas desenvolverão) e assintomáticos (que nunca manifestarão a Covid-19). É apenas a este último grupo, minoria entre os infectados, que se referia a fala da chefe do programa de emergência da OMS.
Tão logo percebeu que a declaração de Kerkhove havia levantado controvérsias, a OMS foi a público esmiuçar detalhes da pesquisa sobre transmissão via pacientes sem sintomas. Bolsonaro não se importou com as explicações, nem com o fato que a fala se referia a um estudo preliminar - o que já estava claro desde o início.
“Com toda certeza isso pode sinalizar a uma abertura mais rápida do comércio e a extinção daquelas medidas restritivas adotadas segundo decisão do STF, adotadas por governadores e prefeitos”, disse o presidente. Ainda acusou a autoridade sanitária de ter perdido a credibilidade, de parecer um partido político e de querer “quebrar países”.
Caso o presidente tivesse focado no que Maria van Kerkhove quis dizer e não apenas no que ele quis entender, teria chegado à conclusão de que o discurso nunca foi o de “liberou geral”. A recomendação seria não pelo fim da quarentena, mas por mais inteligência na alocação de recursos, em um cenário de escassez de testes.
A pesquisa sobre a qual a epidemiologista jogou luz aponta que não é eficaz procurar agulha em palheiro, correndo atrás dos assintomáticos. O mais eficiente para frear a pandemia é focar nos sintomáticos, mesmo os que apresentam manifestações leves da doença, identificar e diagnosticar sua rede de contatos, para isolar os infectados. O Brasil nunca chegou perto disso e segue com um dos países mais afetados que menos faz diagnósticos.
Dos erros, os sensatos costumam sempre tirar uma lição. A postura da OMS, de imediatamente reconhecer o mal-entendido e dirimir a confusão, é exatamente o que se espera de quem sela destinos com suas decisões. Já Bolsonaro não parece aprender com seus constantes equívocos.
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O presidente, que sempre fez ouvidos moucos para as recomendações da comunidade científica, não teve qualquer pudor em aceitar sugestão do empresário Luciano Hang para alterar a metodologia da contagem de mortos para um padrão que camufla a curva da pandemia. A grandeza de um líder pode ser medida tanto pelos conselhos que acata, quanto pelos avisos que cala. No caso de um presidente, nos ombros dessa escolha está o peso de uma nação.
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