"O que é que pode justificar, neste momento, que o Brasil não tenha as vacinas disponíveis para a sua população?"
O desabafo público e emocionado de Margareth Dalcolmo, pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, sobre a incompetência diplomática do governo federal na gestão da compra dos insumos das vacinas é compartilhado por milhões de brasileiros que assistem atônitos a um espetáculo de despreparo e improviso das autoridades públicas nacionais, designadas para cuidar da população durante a pandemia.
Com um presidente que não foi nem sequer capaz de comemorar a aprovação do uso emergencial das vacinas pela Anvisa. A derrota política do governo federal, da qual sua gestão negacionista e leniente é a única culpada, foi mais sentida do que o importante feito para a saúde pública. Nunca se saberá ao certo como se completaria a gafe presidencial iniciada com um "apesar da vacina", que entregou uma mesquinhez incompatível com o cargo que Jair Bolsonaro ocupa, mas a evidência do dissabor está registrada para a posteridade.
Margareth Dalcomo é uma capixaba que orgulha seu Estado e representa a Fiocruz, uma instituição com uma produção científica consolidada, com capacidade de desenvolvimento de vacinas reconhecida internacionalmente. Assim como o Instituto Butantan, é um polo de excelência brasileiro que agora se encontra de mãos atadas, diante da escassez dos insumos necessários para a produção dos imunizantes.
A vacina, neste momento, é a única estratégia comprovadamente capaz de frear o contágio de uma doença que ainda não possui um medicamento capaz de evitar seu agravamento, tampouco "tratamentos preventivos". A decepção de Margareth é compreensível: são anos de estudos, pesquisas e dedicação de especialistas subestimados por um governo que alimenta o desprezo pelo conhecimento científico.
É fato que o Brasil nunca foi pródigo em eficiência, em vislumbrar possíveis problemas com a contingência adotada por nações mais desenvolvidas, mas assistir à incompetência carimbada do governo Bolsonaro no trato da vacinação no país tem um componente de ineditismo. Poucas vezes se viu a profissionalização do improviso de forma tão vigorosa. O ministro da Saúde é um especialista em logística que culpa o fuso horário da Índia por não ter ainda um prazo para o envio das vacinas.
E o Brasil tampouco apareceu na primeira lista de exportações da Índia. Com a China, trava um impasse na compra dos insumos em consequência de uma característica comum a todo o clero bolsonarista: a incapacidade de se sentar à mesa e se dispor ao diálogo. A China é o maior parceiro comercial do Brasil, e nem por isso deixou de ser alvo de uma perseguição ideológica vazia, que só prejudica o lado mais fraco dessa corda. A diplomacia brasileira alinhou-se de corpo e alma ao trumpismo, e agora encontra o desamparo com a chegada de Joe Biden à Casa Branca.
A vacinação emergencial só está engatinhando até durar o estoque de 6 milhões de doses de CoronaVac, a vacina desprezada por Bolsonaro publicamente que, oportunamente, deixou de ser a "vacina do Doria" para se tornar a "vacina do Brasil", slogan que já era usado pelo próprio governador de São Paulo. É possível dizer, sem medo de errar, que não há mérito algum do governo federal nesta primeira etapa de vacinação. A logística permanece falha, o cronograma continua confuso, mas governadores e prefeitos estão conseguindo dar início à vacinação de seus grupos prioritários.
Enquanto isso, a crise de oxigênio no Amazonas não arrefece. Vale reiterar: o governo estadual tem suas responsabilidades, o que não exime Brasília de sua omissão. O caos no Norte do país é sintoma da inexistência de uma gestão central, que se antecipasse às demandas de insumos dos quatro cantos do país. O risco de o desabastecimento se espalhar pelo país não pode ser ignorado. Mas o Planalto segue com ouvidos moucos.
As instituições brasileiras precisam estar em alerta para esse descalabro permanente. Legislativo, Judiciário, sociedade civil organizada... todos devem estar atentos aos atos e omissões do governo. Lamentavelmente, na terça-feira (19), Augusto Aras se antecipou em tirar o corpo fora ao afirmar em nota que eventuais atos ilícitos cometidos por autoridades da "cúpula dos poderes da República" durante a pandemia — e que gerem responsabilidade — devem ser julgados pelo Legislativo. O procurador-geral da República lava suas mãos, portanto.
O Brasil se tornou um pária no exterior. O Brasil é uma aberração no combate à Covid-19 por escolher caminhos obscurantistas, com a exaltação descabida da cloroquina, agora sendo oportunamente abandonada. O Brasil já não se reconhece no Brasil.
Que nacionalismo é esse que destrói o que a nação tem de melhor, como a vanguarda na imunização de seus cidadãos, em nome de uma soberba ideológica que só serve para ofuscar a própria incompetência? "Brasil acima de tudo" só existe no slogan. Com o que tem sido testemunhado no enfrentamento da crise sanitária, uma frase de efeito que perdeu o sentido.
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