Pense na barbaridade que é uma menina de dez anos de idade passar quase metade de sua vida sofrendo violência sexual dentro do próprio ambiente familiar. Pense na tragédia que é uma gravidez resultante do estupro recorrente, com o próprio tio como algoz. Não bastasse tamanha tortura, a exposição pública da vítima no momento mais difícil de sua vida tem potencial para perpetuar essa dor, por negar à menina a oportunidade de um recomeço menos traumático.
A verdade é que não estão dando trégua para essa criança de São Mateus. Mais uma vez, trava-se uma guerra ideológica no país, agora em torno da interrupção da gravidez.
Mesmo que o aborto nessas circunstâncias esteja amparado pela lei, e no caso específico teve decisão judicial favorável, ainda persiste em cada cidadão do país o direito a suas convicções, contrárias ou favoráveis. Não há o que se questionar quanto a isso. Mas jogar a criança aos leões, como acabou acontecendo, para defender as próprias crenças é mais que uma desumanidade: é crime.
Sara Giromini, cujo nome de guerra é Sara Winter, conseguiu mais uma vez os holofotes. A extremista foi responsável por expôr o nome da menina nas redes sociais e o hospital onde o procedimento acabou sendo realizado, no Recife. Na defesa da sua causa antiaborto, passou por cima da dignidade da criança como um trator, reciclando a estratégia de mobilizar os militantes digitais a irem para a rua.
Acabou violando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao contribuir para a estigmatização da jovem. No âmbito penal, especialistas acreditam que ela também pode responder por constrangimento ilegal e incitação de crime, ao expor os médicos do hospital.
O mau uso das redes sociais também fica mais uma vez exposto. Da articulação de robôs à mobilização mais orgânica, a irresponsabilidade de expor uma criança nessa situação de vulnerabilidade e colocar em risco a integridade física de profissionais de saúde envolvidos é a mesma. Todos os meios de comunicação devem respeitar a legislação em vigor, o ECA precisa ser também um balizador para quem se comunica nas redes sociais. Mas como?
As gigantes de tecnologia como Facebook, Google e Twitter se tornaram transnacionais que precisam cuidar do conteúdo de acordo com as legislações regionais. Não é censura prévia, mas a possibilidade de punir quem comete crimes para que se tornem relevantes e públicos os limites legais do que pode ser postado. É preciso que as companhias se responsabilizem e busquem formas de conter o uso impróprio e nocivo do seu ambiente, como ocorre também com a disseminação de fake news.
A preservação da privacidade da vítima é inquestionável porque ela já enfrentará percalços demais até se recuperar de uma situação tão traumática. Não se deve personalizar quem passou por estupro seguido de uma gravidez interrompida, o estigma social é só um dos inúmeros problemas a serem enfrentados. Acompanhamento psicológico será uma necessidade.
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No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde tabulados pela BBC News Brasil, são registrados ao menos seis abortos por dia em meninas de 10 a 14 anos vítimas de estupros. É a ponta do iceberg dessa violência brutal e absurda, cujas vítimas precisam ser protegidas, acima de tudo e de todos.
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