Na crônica “O deletério do povo capixaba”, compilada no livro póstumo “Vento Sul”, a escritora Carmélia Maria de Souza, morta em 1974, espinafrou a postura de alguns moradores do Espírito Santo que “não sabem valorizar as coisas que têm”. Não enxergavam, ela denunciava à época, o potencial turístico de uma cidade como Santa Teresa ou o interesse cultural de uma rua como a Duque de Caxias, uma das mais antigas da Capital. “A ilha”, registrava a cronista sobre Vitória, “está pedindo para que você a deixe crescer.”
Estivesse viva, Carmélia Maria de Souza certamente teria apontado sua artilharia para o abandono do centro cultural no bairro Mário Cypreste que, inaugurado em 1986 durante a gestão do então governador Gerson Camata, foi batizado com seu nome. O Teatro Carmélia, como é conhecido, está agora sob os holofotes devido ao anúncio de que será desativado, após ser requerido pela União. Mas o fato é que o espírito deletério atinge o espaço há anos, sem nenhuma providência de gestores locais, que assistiram à longa agonia sem entregar uma solução e agora lamentam a morte.
Em 2013, apenas dois anos após uma reforma, já havia denúncias formais de infiltrações e falta de água que tornavam penoso o trabalho dos funcionários da TVE, instalados no local. Desde essa época, artistas e ativistas culturais também viram a sala de cinema, o teatro e a biblioteca que funcionavam na edificação virarem ruínas. Nos discursos, muitos projetos de prospecção de recursos e de reúso do local. Na prática, sobraram os escombros que são vistos numa das portas de entrada da Capital.
A Prefeitura de Vitória, a quem o espaço estava cedido, e até o governo do Estado, que administrou o local até 2010, tentam impedir a devolução do Centro Cultural Carmélia Maria de Souza ao governo federal. O prédio foi atingido por tabela com a desocupação dos galpões do IBC, em Jardim da Penha, que serão leiloados em novembro. Com isso, o armazenamento de sacas de café e os escritórios da Companhia Nacional de Abastecimento, que ocupavam os galpões, serão transferidos para o Carmélia.
O governador Renato Casagrande afirmou, em rede social, que o aparelho “precisa continuar como espaço cultural e instrumento de revitalização do Centro”. Infelizmente, há sete anos a edificação no bairro Mário Cypreste não funciona nem como uma coisa, nem como outra. Pelo contrário, insere-se em um contexto mais amplo de perdas de espaços culturais no Estado e de precariedades que assolam a região. Nesse último aspecto, a expectativa é que as obras do Portal do Príncipe, iniciadas neste mês, sejam o pontapé para intervenções mais profundas do poder público, para além da mobilidade.
Já o prefeito Luciano Rezende declarou-se surpreso com a decisão da União de reaver o imóvel. No entanto, a possibilidade de reúso foi aventada ainda em julho do ano passado, quando a nova gestão da Secretaria de Patrimônio da União no Estado assumiu e, em visita ao centro cultural, constatou o abandono. De lá para cá, até houve tratativas para revitalizar o imóvel, mas elas sempre esbarraram em problemas financeiros e técnicos.
Teatro Carmélia e a Cultura do abandono
Uma das propostas era transformar o local na Cidade do Samba, para confecção de fantasias pelas agremiações e melhoria do acesso ao Sambão do Povo. A administração da cidade, porém, admitiu que não teria verba para bancar a obra e tentava costurar um acordo de cooperação com a Liga das Escolas, para reforma e manutenção. Em ofício encaminhado pela SPU à Companhia de Desenvolvimento de Vitória em 2019, o órgão foi categórico ao afirmar que a prefeitura não poderia realizar a concessão do imóvel cedido a ente privado, mesmo que sem fins lucrativos. Em bom português, não poderia emprestar o que não era seu.
A comoção da classe artística e de defensores do desenvolvimento do Espírito Santo é compreensível. O Estado tem um histórico de perda ou má gestão de espaços artísticos ou com potencial turístico e econômico que suscita uma justa preocupação por mais uma derrota, especialmente na região do Centro. Não são raros os casos de prédios públicos abandonados ou subutilizados, como o Mercado da Capixaba, que há anos clama por uma revitalização que nunca chega. Na área cultural, o principal palco capixaba, o Teatro Carlos Gomes é uma ausência dolorosamente sentida desde que foi fechado em 2017 para uma reforma que ainda não saiu do papel. O epítome é o Cais das Artes, obra milionária que um imbróglio judicial impede de zarpar.
O destino do Teatro Carmélia ainda é incerto, já que negociações com o governo federal ou mesmo acionamentos na Justiça podem reverter a devolução à União. Seja qual for o rumo, o espaço e a comunidade merecem o fim do descaso que se viu nos últimos sete anos. A esperança é que a mobilização de ativistas e políticos em torno do centro cultural possa lançar luz sobre a gestão de outros imóveis no Estado que, à mercê das traças, são a raiz de inúmeros males, como o déficit imobiliário, a degradação de patrimônio histórico e o vácuo turístico e cultural. O Espírito Santo precisa aprender a valorizar o que tem.
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