No dia 9 de março de 2020, quando o planeta já testemunhava com perplexidade o avanço de uma certa doença que em poucos dias se confirmaria como uma pandemia, o presidente Jair Bolsonaro afirmava para uma plateia internacional, em Miami, que tinha provas, a serem apresentadas em breve, de que a eleição de 2018 no Brasil havia sido fraudada. Sim, o presidente colocou o pleito que o levou ao Planalto sob suspeição, para os mesmos Estados Unidos que agora se encontram inflamados por um presidente que se nega a aceitar a derrota nas urnas.
Quase um ano depois, sem ter apresentado evidência alguma, o mandatário brasileiro volta a colocar em xeque o sistema eleitoral do país, ao questionar a urna eletrônica e fazer a defesa do voto impresso como prerrogativa para evitar o caos em 2022. Em tom de ameaça. Bolsonaro, chafurdando na irresponsabilidade que lhe é peculiar, promove um terremoto institucional que não somente é um ataque direto ao TSE, mas um voluntário afronte ao Estado democrático de Direito.
Com tal afirmação despropositada, Bolsonaro está contratando uma crise para 2022. Despeja óleo na pista, como se o Brasil já não enfrentasse problemas domésticos relevantes: a inoperância do enfrentamento da crise sanitária é o destaque, mas há anos o país não consegue se reerguer economicamente, sufocado pela instabilidade política. Um presidente que tem sempre nas mãos a gasolina e o isqueiro. Passou dos limites, mais uma vez.
As barbaridades que Bolsonaro profere ao seu séquito no cercadinho do Palácio da Alvorada têm esse problema: elas não se restringem àquele espaço de culto desmedido e têm peso por saírem da boca de um presidente da República, por mais que ele nunca tenha se comportado como tal.
Essa ameaça ao processo democrático exige reação veemente daqueles que são os alicerces institucionais da nação. Supremo, Congresso, Ministério Público Federal, empresariado, chefes dos Executivos estaduais e municipais e a sociedade civil organizada devem se posicionar contra esses arroubos autoritários que, além de inoportunos em um momento no qual o país tem problemas concretos a serem resolvidos, colocam a democracia brasileira em descrédito.
A reação do presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, foi assertiva. Nota enviada por sua assessoria resumiu os ânimos: "O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, lida com fatos e provas, que devem ser apresentadas pela via própria. Eventuais provas, se apresentadas, serão examinadas com toda seriedade pelo tribunal".
Donald Trump é a grande inspiração, e a invasão do Capitólio nesta quarta-feira (06) por uma horda trumpista é o aviso. Como o colega norte-americano em contagem regressiva no poder, Bolsonaro não gosta de ser contrariado. Para Trump, a eleição de 2020 já estava ganha muito antes de ser realizada. Bolsonaro segue a tendência, partindo do pressuposto de que já está reeleito, desprezando o voto em si, que é o que de fato conta.
Sobre as eleições norte-americanas, Bolsonaro endossou as mesmas falácias de votos a mais pelos correios, votos de pessoas que já morreram... tudo já comprovadamente contestado e aceito até mesmo por lideranças republicanas de peso. E o pleito por lá tampouco é 100% eletrônico como no Brasil, pelo contrário. O que só reforça o absurdo da fala de Bolsonaro.
Cabe reforçar que os impropérios bolsonaristas contra o voto eletrônico não encontram eco na sociedade. Pesquisa Datafolha divulgada no último dia 2 mostrou que 73% dos brasileiros querem que as eleições continuem a ser realizadas com a urna eletrônica. Já 23% responderam que querem voltar a usar o sistema de voto em papel, sem se lembrar que significará um retrocesso de quase 30 anos, quando as eleições no Brasil eram de fato marcadas por fraudes. A urna eletrônica foi responsável não somente por mais lisura, como por mais eficiência no processo eleitoral.
Neste episódio lamentável, os Estados Unidos não podem servir de espelho para o Brasil. Bolsonaro deveria estar mais preocupado em firmar novos laços diplomáticos, porque o que interessa agora ao país é o futuro. O país já tem tantos problemas acumulados nos últimos tempos, o que menos precisa é se apegar a um presidente que, por bem ou por mal, não estará mais na Casa Branca em poucos dias, criando assim mais um contratempo. Bolsonaro precisa, urgentemente, começar a olhar para o Brasil.
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