O Brasil precisou atingir a marca das 300 mil mortes por Covid-19 para que o Planalto enfim decidisse instalar um comitê federal para a crise sanitária, um ano e sete dias após o registro do primeiro óbito no país. A tragédia brasileira é tão flagrante — com os recordes diários de mortes e novos casos, colapso hospitalar simultâneo em vários Estados, disseminação de novas cepas e ritmo lento de vacinação — que a mera crítica a tanta demora, a esta altura, soa inoportuna diante das urgências que se acumulam.
Mas as primeiras movimentações dos Poderes em torno da aguardada coordenação federal já apresentam dissonâncias a ponto de o próprio presidente Jair Bolsonaro ter decidido se afastar, delegando ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o papel de interlocutor entre o comitê recém-criado e os Estados.
Não que o presidente tenha mostrado até o momento capacidade de liderança que venha a fazer falta, pelo contrário. O que intriga é imaginar o que se pode esperar de um país cujo chefe da nação precisa se ausentar para permitir a consolidação do diálogo. Positivamente, é possível que, sem Bolsonaro, o Brasil desengate do negacionismo rumo a decisões mais racionais.
A desconfiança de que a formação desse comitê seja mais uma encenação diante do agravamento da pandemia não pode ser descartada, embora Bolsonaro tenha moderado a retórica na reunião com chefes dos poderes Legislativo e Judiciário desta quarta-feira (24), na qual ficou acertada a formação do grupo.
Moderado, mas não a ponto de dar por superadas a insistência na defesa do tratamento precoce e as críticas às medidas de restrição social. Ao menos houve o compromisso explícito com a vacinação em massa no país. Bolsonaro quis sinalizar que a chegada de um novo ministro da Saúde vai marcar uma nova fase na gestão da pandemia. O presidente só vai conseguir ser convincente quando as palavras derem lugar aos atos.
O fato de Estados e municípios não terem um assento nesse comitê é um indicativo de que a falta de integração entre entes e a União pode se prolongar, mantendo-se os ruídos que desde o ano passado têm atrapalhado as mobilizações nacionais para o combate à Covid-19.
E Bolsonaro em pelo menos dois episódios foi o porta-voz da desinformação: sobre a decisão do Supremo que permitiu a autonomia na gestão da pandemia aos Estados e sobre os valores dos repasses federais aos governos estaduais. Os confrontos só serviram para mobilizar a base bolsonarista mais fiel e desgastar ainda mais as ações localizadas de enfrentamento da pandemia.
Se as cobranças internas se avolumam diante do caos instaurado, no exterior o Brasil conseguiu construir a imagem nada gloriosa de “pária internacional” na condução da crise sanitária. A situação no país é acompanhada com perplexidade pela comunidade científica, diante da desorganização gerencial que coloca a ideologia acima da ciência, e por lideranças políticas. Sendo que até governos alinhados com Bolsonaro, caso de Israel, têm apostado na racionalidade científica e colhido bons resultados. Esse comitê, se bem direcionado, pode começar a reverter a imagem negativa do país.
Em discurso sobre a pandemia na Câmara nesta quarta-feira, o presidente da Casa, Arthur Lira, em tese aliado de Bolsonaro, elevou o tom e afirmou que "tudo tem limite", reforçando que a insatisfação com a falta de políticas sanitárias efetivas e de direcionamentos mais razoáveis do governo federal não se desfez após a reunião com o presidente, mais cedo.
Bolsonaro encena uma reconciliação de fachada, com a qual não há o menor interesse de se comprometer. Um presidente que quatro dias atrás promovia uma aglomeração para comemorar seu aniversário e acusava os governadores de estarem "esticando a corda" não seria capaz de uma guinada para o bom senso em tão pouco tempo. Mas, sob pressão política, sobe no palco ligeiramente para se proteger.
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