O cheiro de queimado vindo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), causado pelo pedido de demissão em massa de servidores que ocupavam cargos de chefia, revela um incêndio ainda maior que toma conta do Ministério da Educação. Mais de 30 técnicos qualificados, responsáveis pela execução do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), vêm entregando seus cargos ao longo das últimas semanas alegando fragilidade técnica e administrativa.
Sob um forte matiz ideológico desde o início do governo Bolsonaro, com a desculpa esfarrapada de que era preciso reduzir a influência da esquerda dentro do MEC, a educação brasileira, que já não vinha bem, é verdade, entrou num processo acelerado de autodestruição. O componente ideológico, muito forte, é inversamente proporcional à competência do atual ministro, Milton Ribeiro, e também dos que o precederam: Ricardo Velez e Abraham Weintraub.
O resultado dessa trama não pode ser muito diferente do que o que estamos assistindo. Reportagem do Fantástico do último domingo (14) revelou investidas da cúpula do MEC para interferir no conteúdo das provas. O presidente Jair Bolsonaro, em entrevista dada em Dubai, confirmou a denúncia: "Começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem". Mais um caso claro de confusão entre governo e Estado, algo normal sob Bolsonaro, mas que não deixa de chocar. Confusão que, por sinal, tem o objetivo de agir como cupins corroendo a solidez das instituições.
Uma das entrevistas dadas sob anonimato pelos servidores ao Fantástico é esclarecedora: "O Inep sempre foi dirigido por pessoas que tinham alguma trajetória acadêmica. Esse presidente que está agora (Daniel Dupas) é uma pessoa sem currículo, sem experiência. Está lá porque o ministro da Educação decidiu que seria a pessoa que estaria disposta a fazer o que eles queriam: entrar na prova e retirar aquilo que eles acham que o presidente não iria gostar."
Todo esse caos envolvendo o Enem, cujo primeiro dia de provas será no próximo domingo (21), se dá num momento para lá de desafiador para a educação brasileira. Momento que exige diálogo, foco e competência. A pandemia deixou uma herança maldita: levantamento feito, em setembro e outubro, com 250 mil alunos do 2ª ano do ensino fundamental de 10 Estados brasileiros mostrou que 74% dos estudantes se enquadravam na categoria dos “não alfabetizados”. Ou seja, conseguiam ler no máximo nove palavras por minuto. Apenas 7% eram “leitores fluentes”. Em 2019, portanto antes da pandemia, 52% dos alunos desta mesma faixa estavam na categoria de "não alfabetizados". O estudo foi tocado pela Fundação Lemann, Instituto Natura e a ONG Bem Comum. Sobre como desatar esse nó, nenhuma palavra de Milton Ribeiro ou de Bolsonaro...
Entrevistada pela Rádio CBN, Maria Inês Fini, que presidiu o Inep durante o governo Michel Temer, dimensionou o tamanho do buraco em que nos metemos. "Desde janeiro de 2019 são frequentes as tentativas de enfraquecimento do Inep. Não temos só o Enem, deveríamos ter começado a aplicação do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), o Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos) tem problemas, temos ainda o Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) e o Censo da Educação Básica. Como você faz política pública sem esses dados? Esses técnicos que estão saindo do Inep são responsáveis por isso tudo, ou seja, é algo gravíssimo!".
Tendo em vista que de dentro do governo não virá nada que aponte para uma solução, é preciso novamente que as instituições reajam. Um bom começo seria o Congresso convocar o ministro Milton Ribeiro a dar explicações sobre a crise do Enem e sobre o que sua gestão pretende fazer para tirar a educação brasileira da sombra provocada pela pandemia. Se algo sair daí, já terá sido uma vitória.
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