Em junho de 2020, apenas um mês após o auxílio emergencial começar a ser pago no país, o Tribunal de Contas do Espírito Santo lançou um alerta. No Estado, 2.627 servidores públicos municipais e estaduais haviam recebido indevidamente o benefício do governo federal, vetado a trabalhadores formais. Quase um ano depois do aviso, as prefeituras da Grande Vitória ainda não concluíram as investigações dos casos suspeitos em seus quadros. A situação reúne algumas das mazelas brasileiras, como descaso com a verba pública e a morosidade da justiça, aqui entendida como a atuação de órgãos de controle, sejam quais forem.
Desde aquele primeiro sinal de alarme, os números escalonaram. O aprimoramento da checagem, com a inclusão de novas bases de dados no cruzamento de informações, fez com que as estimativas de CGU, TCU e tribunais de contas e controladorias subnacionais alcançassem, apenas dois meses depois, em agosto, a assombrosa quantidade de 680.564 agentes públicos incluídos indevidamente como beneficiários — 7.109 deles apenas no Espírito Santo, o que já somava, à época, R$ 11,3 milhões em pagamentos irregulares.
Atualmente, as prefeituras de Vitória, Vila Velha, Serra, Cariacica e Viana investigam 240 casos suspeitos. Considerando que cada um desses servidores tivesse recebido apenas uma parcela do chamado coronavoucher, o prejuízo aos cofres públicos seria de R$ 144 mil. Mais do que os números, no entanto, o que intriga a população capixaba é a demora das administrações para checar quais servidores receberam indevidamente o benefício e para, na confirmação de fraude, tomar as devidas providências. Além das penalidades administrativas, quem embolsa o benefício sem atender aos quesitos está sujeito a repercussões na esfera criminal, pelos crimes de estelionato e falsidade ideológica, quando ratificada a ma-fé.
Quatro das cinco prefeituras ouvidas em levantamento deste jornal afirmaram que ainda apuram as suspeitas e que até o momento não houve punições, nem mesmo devoluções. Vitória e Vila Velha nem sequer forneceram o número preciso de casos em investigação. São “aproximadamente” 20 na Capital e 50 no município canela-verde. Em Cariacica e na Serra, há detalhamento de casos, mas as prefeituras não têm informação se o ressarcimento dos valores foi feito. Apenas em Viana há registro de restituição ao governo: cinco dos 47 suspeitos.
Tudo leva a crer que grande dos pagamentos indevidos ocorreu não por burla dos servidores, mas por falha do próprio governo federal. Metade dos agentes públicos que receberam indevidamente o auxílio no Espírito Santo não solicitaram a ajuda, de acordo com o TCU. Tiveram o dinheiro creditado automaticamente em suas contas, por terem integrado, em algum momento, cadastros de programas sociais. No entanto, não importa de onde tenha partido o erro, permanecer nele é indefensável. É forçoso identificar quantos e quais servidores tiveram acesso à ajuda indevida e, ao menos, cobrar deles o ressarcimento.
Há um ano, o auxílio emergencial pago a desempregados, autônomos e MEIs tem ajudado milhões de brasileiros a enfrentar a crise econômica gerada pela pandemia com alguma dignidade. Foi responsável, por exemplo, pela menor taxa de pobreza extrema em 44 anos, segundo a FGV. Mas desde o início dos pagamentos, o benefício tem tido seu objetivo conspurcado por fraudes e irregularidades.
Com os desvios, involuntários ou por má-fé, outros milhões de cidadãos que realmente precisam deixaram de receber ajuda. Apenas em 2020, os recursos corroídos com pagamentos indevidos no Brasil somaram R$ 54 bilhões, o suficiente para pagar três parcelas de R$ 300 para 60 milhões de necessitados. É sobretudo em face a essa realidade que a morosidade das prefeituras em investigar os casos não é justificada. Como zeladoras do bem público, devem servir de exemplo. De bom exemplo.
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