Em meio à pandemia que já matou quase 280 mil brasileiros em um ano, o Ministério da Saúde volta a ter mais um protagonismo negativo, numa coleção de reveses que colocaram o Brasil na elite do atraso do combate à Covid-19. Não é hora para eufemismos, o país passa pelo pior momento dessa tragédia sem uma coordenação efetiva no setor prioritário, com o presidente Jair Bolsonaro mais preocupado em combater o incêndio político provocado pela incompetência do general Eduardo Pazuello do que em tomar medidas que de fato reduzam os danos acumulados pela sua própria insistência no negacionismo.
É inacreditável que ainda falte o mínimo de bom senso para se perceber que o Brasil está na contramão de tudo o que está dando certo ao redor do mundo. O novo ministro já foi escolhido. Espera-se que o bolsonarismo assumido do cardiologista Marcelo Queiroga não o afaste das decisões que serão cruciais para reverter o caos instalado no país. O rumo do combate à Covid-19 necessita de nova direção.
Pazuello foi o terceiro a reger a Saúde desde o início da crise sanitária. Sucedeu a dois médicos: um Nelson Teich cabisbaixo, que nem assim suportou o peso da ingerência insana de Bolsonaro na pasta, e um Luiz Henrique Mandetta altivo, que encarou o início da pandemia com uma coragem e uma sensatez incompatíveis com o governo do qual fazia parte.
Ao general, o terceiro na linha sucessória pandêmica, coube o "um manda, o outro obedece", papel que ainda cumpre com louvor, acumulando erros de estratégia e falhas de gestão que têm impacto direto no status atual da pandemia no Brasil. Ao perder a oportunidade de negociar as vacinas no segundo semestre do ano passado, o ministro da Saúde conseguiu ofuscar a maior esperança de um retorno à normalidade. Estendeu-se assim a vulnerabilidade da saúde dos brasileiros e prolongou-se a crise econômica em um governo que brada pela defesa da economia sem se atinar que não há bonança se o povo não está seguro e saudável.
Se o atraso inaceitável da vacinação expõe um país refém da falta de gerenciamento da saúde, os problemas adjacentes também se acumulam, com insistências que chegam a ser doentias. Distanciamento social, visto com tanto desdém pelo núcleo duro ideológico do Planalto, é algo que nunca foi praticado pelo presidente. Máscaras são um mero adorno dispensável. E a obsessão com os medicamentos que compõem a panaceia do tratamento precoce, sem nenhuma comprovação científica, só contribui para criar a falsa impressão de que existe algum controle sobre a doença. Enquanto UTIs seguem lotadas, e o país continua batendo recordes diários de mortes.
A demissão de Pazuello vinha sendo ventilada, segundo analistas políticos, para esvaziar a possível instauração de uma CPI da Pandemia no Senado para apurar erros e omissões da gestão do general. E ainda pesa sobre ele o inquérito aberto pela Polícia Federal, por determinação do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), para investigar a conduta do ministro na crise de oxigênio do Amazonas, em janeiro.
A inversão de valores ficou explícita: a escolha de um ministro médico, alinhado ideologicamente com o Planalto, mas capaz de acalmar as forças políticas insatisfeitas sem ofender a base eleitoral mais radical do presidente tornou-se uma prioridade acima da própria competência. Os requisitos exigidos permanecem equivocados e ganham um peso dramático diante da falta de uma coordenação central.
A participação da cardiologista Ludhmila Hajjar nessa encenação foi um episódio lamentável do começo ao fim. Não pela falta de currículo e de experiência da candidata, com posicionamentos firmes e uma clara noção do que deve ser feito para começar a colocar a gestão da pandemia nos eixos. Mas pelo circo de horrores armado, com direito a reunião na presença do ministro demissionário e a mobilização da turba ideológica na internet, para inviabilizar de vez o ingresso de uma profissional que preza a ciência em um governo assumidamente negacionista.
Foi triste ver uma médica séria, jogada aos leões com tanta voracidade. Tão desanimador quanto assistir a uma profissional gabaritada ser levada a um nível tão alto de descrédito por seu compromisso com a saúde é constatar o nível de desumanidade provocado pela cegueira coletiva causada pela politização da pandemia. Aqui no Espírito Santo, a carreata que parou em frente à residência da mãe do governador Renato Casagrande para atacá-lo é um espelho dessa falta de sensibilidade que toma conta de alguns setores no país. É reflexo da falta de diálogo e de racionalidade.
Basta olhar ao redor para se constatar os estragos da omissão até aqui. O novo ministro Marcelo Queiroga tem bagagem, é presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. De perfil técnico, espera-se que abra o diálogo com seus pares e que se guie por orientações e protocolos que sejam consenso na comunidade médica e científica. Já se posicionou na defesa da tradição do país em programas de vacinação e rejeitou o tratamento precoce. O novo ministro deve estar preparado, contudo, para enfrentar a pandemia da insensatez, no seu epicentro. E não se tornar mais um na fila dos insensatos.
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