A pandemia do novo coronavírus lançou holofotes sobre a necessidade urgente de modernização do saneamento básico no país, não apenas pela tragédia representada por milhões de cidadãos sem acesso a tratamento de esgoto e água potável, o que já seria motivo suficiente. A crise econômica que veio a reboque também amplificou a incapacidade do modelo atual de gestão das águas para dar conta da magnitude da missão e tirar o Brasil de um cenário medieval. Faltam dinheiro, planejamento e fiscalização.
Mesmo nas estatais de saneamento superavitárias, os recursos arrecadados com as tarifas não se traduzem em projetos de vulto para universalizar os serviços. Em vez disso, descem pelo ralo com aumento de salários e com a má gestão, e muitas precisam contar com repasses dos governos a que estão vinculadas. Com a recessão econômica que se anuncia, os investimentos dos cofres públicos estarão ainda mais escassos, e os avanços na área, mais comprometidos.
Documento a que A Gazeta teve acesso mostra que, entre 2014 e 2018, as despesas anuais com empregados da Cesan, no Espírito Santo, subiram 40%, enquanto os investimentos cresceram apenas 17%. Essa realidade replica-se de Norte a Sul: das 26 estatais analisadas pela consultoria Inter.B, apenas cinco tiveram avanços maiores em investimentos do que em gastos com pessoal.
A Cesan alega que 2014, devido às crises econômica e hídrica, foi um ano difícil para o setor. Se a comparação for feita a partir de 2015, os números melhoram: até 2019, a despesa com pessoal da Cesan cresceu 31%, e os investimentos subiram 41%, de acordo com cálculos da estatal.
Mesmo que a Cesan esteja em posição mais confortável que outras autarquias, o desafio é substancial. No Espírito Santo, há 1,7 milhão de pessoas sem acesso à rede de esgoto e 745 mil sem água encanada. O montante necessário para a universalização é de cerca de R$ 9 milhões, mas a estatal capixaba conta com pouco mais de R$ 2 milhões em investimentos contratados até 2024, por meio de recursos próprios e empréstimo.
Em todo o Brasil, são 100 milhões à margem de serviços de esgotamento e 35 milhões sem água limpa, com necessidade de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões de aporte nos próximos anos. Não parece razoável que esse cenário será contornado apenas com investimentos públicos, especialmente no pós-pandemia.
A aprovação do marco regulatório do saneamento promete dar fôlego ao setor. O Brasil finalmente poderá se libertar de um modelo que, gestado na década de 1970, permitiu que empresas operassem sem licitação e sem comprometimento com metas. Agora, a universalização deixa de ser um pote de ouro no final do arco-íris, sonhado e nunca alcançado, e passa a ser lei, sob o risco encerrar contratos caso objetivos não sejam concretizados.
Se a estatal for enxuta e comprovar que tem capacidade de fazer frente aos investimentos necessários, será bem-vinda no páreo. Mas a abertura ao capital privado e à concorrência, em paralelo ao estabelecimento de diretrizes firmes para o setor, é certamente gatilho para um círculo virtuoso que ultrapassa em muito os efeitos mais óbvios.
Em primeiro lugar, está o ganho social. Livrar cidadãos dos esgotos e lixões a céu aberto é livrá-los de doenças, com impactos no desempenho escolar. De quebra, a universalização do saneamento significaria uma economia anual de R$ 1,4 bilhão em gastos na área da saúde. Em seguida, está a geração de emprego, crucial para a retomada. Segundo relatório do Senado, cada R$ 1 bilhão investidos convertem-se em 60 mil postos de trabalho.
O presidente Jair Bolsonaro tem até o próximo dia 15 para sancionar o marco legal, mas o compromisso do governo federal não termina aí. As concessões exigirão regulação do Estado e é preciso diálogo para criar normas que atendam os princípios do interesse público, especialmente para assegurar atendimento nos rincões do país a tarifas justas. Acertada a segurança jurídica, terá ainda que garantir equilíbrio político para atrair investidores, senão tudo pode ir por água abaixo.
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