O negacionismo científico impregnado no nível federal e em determinados setores mais exaltados da sociedade ganhou uma dimensão assustadora na pandemia, com a resistência cega às orientações sanitárias baseadas em estudos e métodos rigorosos se sobrepondo a qualquer traço de racionalidade.
O apoio ao tratamento precoce, mesmo com as evidências da ineficácia e dos riscos para a saúde, e a descrença nas vacinas, no uso de máscaras e no distanciamento social estão diretamente relacionados à disseminação acelerada do vírus e, consequentemente, ao enfileiramento de mortos no Brasil, que já ultrapassaram a marca dos 300 mil.
Mas essa crise de confiança na ciência tem sido alimentada há mais tempo por teorias conspiratórias de toda sorte (basta lembrar que a crendice antivacina de forma mais organizada já existe há pelo menos duas décadas). As bases desse culto à ignorância permanecem sólidas em um país no qual a educação é fragilizada pelo mau direcionamento crônico de investimentos.
Mas o despreparo na apreensão de informações científicas também é um sintoma cultural do qual nem classes com rendas mais altas e com acesso a um ensino mais qualificado escapam, ao enxergar na educação um produto precificado e não um bem valioso e inalienável.
A educação com valor não necessariamente é aquela mais cara da prateleira: é uma educação crítica, que permite a compreensão do mundo com base no conhecimento. E precisa ser ampla, tendo sua aplicabilidade amparada por um arcabouço humanístico. O que, antes que mencionem, nada tem a ver com ideologia.
Só assim aqueles que ditam os rumos do país terão a bagagem necessária para defender a aplicação de recursos em ciência e tecnologia, o que nem sempre é um investimento de resultados no curto prazo, imediatistas. Não ganham eleição, portanto, mas são os fundamentos de um projeto de país.
Uma nação que produz conhecimento científico e fortalece suas aplicações não só na saúde e na medicina, como se vê na pandemia, mas em outros setores como a indústria e os serviços, é uma nação fortalecida, com potencial de excelência econômica e oportunidades sociais.
É inegável que a pandemia é um ponto fora da curva que exige uma adequação de gastos, sobretudo quando o desequilíbrio fiscal já figurava como um problema anterior à própria crise sanitária. Mas a aprovação do Orçamento 2021 na Câmara apontou prioridades distorcidas. Tanto o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação quanto o Ministério da Educação sofreram cortes em relação a 2020, enquanto a sanha por emendas parlamentares eleitoreiras se sobrepuseram às emergências desses dois setores.
É como se a pandemia fosse mera coadjuvante e não exigisse um esforço científico e tecnológico sem precedentes, além de desafiar o sistema educacional com a permanência do ensino remoto enquanto a crise sanitária se prolonga e aprofunda as desigualdades sociais brasileiras.
Mas é conveniente ressaltar que a falta de incentivos nos dois campos vem de antes. E mesmo que a conta do descaso com a produção de conhecimento no Brasil esteja sendo paga agora, instituições públicas como o Instituto Butantan e a Fiocruz têm sido protagonistas na produção de vacinas.
O Butantan dá passos importantes, inclusive, em uma parceria para a produção de um ainda controverso imunizante "100% brasileiro", já que a tecnologia para obter o vírus foi desenvolvida pela Icahn School of Medicine do Hospital Mount Sinai, de Nova York, e será licenciada pelo instituto. Minúcias à parte, será mais uma opção de vacina para o país.
Cortes orçamentários também podem acelerar o sucateamento do fomento à pesquisa em universidades, sob o risco de paralisação do desenvolvimento científico em um momento tão crítico quanto o atual. As trincheiras acadêmicas, com a produção de estudos médicos e epidemiológicos que contribuíram para desvendar os mistérios do novo coronavírus desde o seu aparecimento, são também importantes barreiras para a desinformação.
E quando se fala de produção de conhecimento, não se pode deixar de mencionar o Censo 2021, que teve o orçamento enxugado de R$ 3,4 bilhões para R$ 2 bilhões, com sua realização sendo potencialmente inviabilizada. O levantamento realizado a cada dez anos pelo IBGE também é ciência, com metodologia específica para mapear a população brasileira, servindo de base para políticas públicas mais qualificadas.
Adiado no ano passado em função das limitações logísticas impostas pela pandemia, há dúvidas se há condições de realizá-lo em 2021 com segurança. Mas a irrelevância com a qual o Censo tem sido tratado só confirma a falta de senso que domina este país.
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