Em vez da imunização da população, a imunidade dos parlamentares. Enquanto medidas fundamentais para que o Brasil enfrente a pandemia aguardam decisão, entre elas a garantia da vacinação em massa, o Congresso Nacional tirou da cartola um projeto que reduz a chance de prisão de políticos. A PEC da Imunidade, não à toa apelidada de PEC da Impunidade ou da Blindagem, enfileira despautérios que sugerem que parte do Legislativo vive em um universo paralelo, completamente dissociado da agenda nacional. Tentaram “passar a boiada”, mas ao menos desta vez a democracia mostrou que está vacinada.
Após enfrentar uma enxurrada de críticas, a proposta foi retirada de pauta na tarde de sexta-feira (26), e Arthur Lira (PP-AL), que nem bem esquentou a cadeira de presidente da Câmara, amargou sua primeira derrota expressiva. Embora tenha dito que não tinha interesse no resultado, apenas na instauração do processo, Lira articulou fortemente com a parcela fisiológica da Casa pela acelerada aprovação do texto que, entre outras medidas, restringe punições ao Conselho de Ética, reconhecidamente leniente, e permite a prisão em flagrante apenas para crimes inafiançáveis previstos na Constituição.
Desde o início, a PEC da Imunidade errou na forma e no conteúdo. Para qualquer cidadão com bom senso, era difícil justificar a postura de alguns nobres congressistas que, na mesma semana em que o país enfrenta um recrudescimento da crise sanitária, bate recorde de mortes diárias e tem 15 Estados sob ameaça de colapso do sistema de saúde, concordaram que o assunto mais importante a ser debatido era o seu próprio umbigo. Além do timing equivocado, a proposta caminha na contramão dos anseios por mais decoro e transparência da classe política, ao buscar blindar deputados e senadores da prisão.
Não apenas é óbvia a inversão de prioridades, como também causa espécie a velocidade supersônica com que a PEC avançou na Casa. Aproveitando-se do relaxamento dos ritos em decorrência da crise sanitária, em apenas quatro dias a proposta foi protocolada, teve sua admissibilidade concedida e estava pronta para o primeiro turno de votação. Não fosse a grita de cidadãos, parte dos parlamentares e ministros do STF, teria sido aprovada em prazo relâmpago.
Nem mesmo se o assunto fosse imperioso, o que não é o caso, esse ritmo alucinante seria adequado. O tema é polêmico e exige debate aprofundado, um consenso mesmo entre aqueles que defendem revisão das regras em torno da imunidade. A título de exemplo, a PEC Emergencial, essa, sim, uma urgência, como o próprio sugere, porque interfere em questões como a liberação do auxílio, também emergencial, tramita na Câmara desde novembro do ano passado.
Na prática, a PEC da Imunidade é um retorno ao foro privilegiado. Caso estivesse em vigor, teria impossibilitado a prisão em flagrante do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) na última semana, após ter publicado vídeo com ataques ao STF e em defesa da ditadura militar. Também teria impedido o afastamento da congressista Flordelis (PSD-RJ), apontada como a mandante do assissinato do marido.
A retirada do assunto da pauta é uma primeira correção de rumo. O atropelo de assuntos urgentes foi um péssimo sinal à nação, um desrespeito aos mais de 250 mil brasileiros mortos pela Covid-19 e aos milhões que esperam pulso firme de seus representantes na condução da crise. No entanto, a ideia perigosa de blindar ainda mais deputados e senadores adormece, mas não morre.
A proposta apenas seguirá o rito de praxe, com passagem por comissão antes de chegar ao plenário. Até lá, o Congresso precisa passar por um exame de consciência para provar que não está alinhado a uma tendência recente que colocou o Brasil em marcha a ré no combate à corrupção, com o desmonte da Lava Jato, o aparelhamento de órgãos de controle, revogação de regras, suspensão de ferramentas de fiscalização e as propostas de revisão da leis de improbidade e do nepotismo. O país não pode mais andar para trás.
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