Quantos editoriais sobre feminicídio serão escritos até que esse crime bárbaro deixe de nos atormentar? Ainda faz algum sentido se indignar a cada repetição dessa atrocidade que, só no ano passado, fez 35 vítimas no Espírito Santo? Os casos quase diários de agressões e mortes, que alimentam essa cultura de violência, mostram que sim.
O caso da enfermeira Íris Rocha de Souza, de 30, grávida de oito meses, acabou se tornando emblemático por alguns pontos fora da curva, quando se fala desse crime que costuma prevalecer no ambiente doméstico. O corpo da vítima foi encontrado em Alfredo Chaves, um município com o qual ela não tinha nenhuma relação conhecida. E estava coberto com cal, substância usada para acelerar a decomposição. O celular dela não foi encontrado pela polícia.
E são justamente essas circunstâncias que provocam uma reflexão: os crimes de feminicídio têm características tão bem determinadas que é impossível um crime perfeito, sem suspeitos. Quando se puxa o fio, acaba se chegando a relações abusivas, histórico de agressões e pressões contra a mulher. O feminicídio é um crime fadado a ser descoberto, por mais que se queira confundir as investigações.
As leis de proteção a mulher se aprimoraram neste século, da Lei Maria da Penha à própria Lei do Feminicídio. São avanços inequívocos. Houve uma mudança de cultura, com as pessoas adquirindo a noção de que é preciso, sim, intervir em briga de marido e mulher. Há recursos como botão de pânico, amparos legais como as medidas protetivas, além da construção de uma mentalidade institucional de enfrentamento da violência contra a mulher.
E o fato de Íris não ter conseguido a medida protetiva quando a solicitou, em outubro, é um sinal de que ainda há burocracia em demasia ou falhas que não deveriam mais ocorrer nas ações de proteção à mulher. A Corregedoria da Polícia Civil já anunciou que o caso está sendo investigado e é importante que seja explicado ao público.
Mas, então, por que tantas mulheres ainda são vítimas dessa barbárie? Os homens que cometem esse crime não são demovidos por leis mais duras ou pela certeza de que serão descobertos simplesmente porque ainda agem sob as engrenagens do machismo, impregnado em suas atitudes. Acreditam, mesmo que silenciosos, que as mulheres com quem se relacionam são suas posses. A violência contumaz, que em determinado momento pode levar à morte dessas mulheres, acaba sendo algo que condiz com a sua própria condição masculina, de superioridade.
Esses traços estavam no relacionamento de Íris: uma jovem mestranda, bem-sucedida na sua profissão, mas que acabou se anulando nos poucos meses de relacionamento. Uma relação abusiva, na qual ela era constantemente monitorada. Como reforçou o secretário de Estado de Segurança Pública, Alexandre Ramalho, no Bom Dia ES, da TV Gazeta, é um crime que se repete porque "vivemos em uma sociedade machista, uma sociedade na qual o homem acha que a mulher é um objeto seu e pode ditar as regras, acha que a mulher não tem autonomia de terminar um relacionamento, então nós precisamos trabalhar isso na base, que é a educação, ainda com as crianças".
O poder público e a Justiça não podem se eximir do aprimoramento e da aplicação das leis, e da construção de políticas públicas em defesa da integridade feminina. Essas são as trincheiras na qual qualquer mulher em situação de vulnerabilidade precisa encontrar apoio. Mas há outra trincheira, a de aniquilação do machismo presente na sociedade, que precisa da atuação conjunta de homens e mulheres. É possível, sim, mudar essa cultura. E enquanto houver esse destino cruel para tantas, vamos continuar mostrando nossa indignação, mesmo que pareça repetida.
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