A tentativa do presidente Jair Bolsonaro de transferir a culpa pelos testes encalhados em um armazém do governo federal a Estados e municípios é um retrato de sua gestão até aqui, em que a falta de planejamento combina-se com a total ausência de responsabilidade. É uma combinação explosiva, como apontam as ruínas por onde quer que se olhe. Da gestão da imprevisível pandemia ao cumprimento das reformas estruturantes, não apenas esperadas como prometidas pelo inquilino do Planalto, o Brasil está sem rumo e sem liderança.
Pela emergência do tema, o trato do governo Bolsonaro com a pandemia é o mais explícito exemplo de vácuo de estratégia. Enquanto o Brasil bate a maior taxa de transmissão desde maio, face a um aumento expressivo e continuado do número de casos, o Executivo federal não apresentou nenhum plano de imunização até o momento nem dá sinais de que tenha elaborado algum. Pelo contrário, recorreu de decisão do TCU de agosto que determinou a entrega planejamento detalhado. Isso sem falar nas negociações com fabricantes das vacinas, que deveriam estar adiantadas a esta altura, mas o presidente prefere comemorar suspensões nos testes como vitória pessoal.
Na seara econômica, o saldo entre os compromissos firmados desde a campanha e os efetivamente cumpridos é frustrante. Em primeiro lugar devido aos delírios de Paulo Guedes, que prometeu mais do que poderia entregar, como zerar o déficit público em um ano. Mas mesmo os projetos viáveis ficaram pelo meio do caminho. Com quase dois anos de gestão, nenhuma privatização saiu do papel e os leilões de imóveis da União andam a passos de tartaruga. A lentidão na aplicação da agenda liberal levou, inclusive, a uma debandada de membros importantes da equipe econômica, entre eles o secretário especial de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e o secretário de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel.
O governo coleciona alguns avanços, notadamente na aprovação da reforma da Previdência e do marco do saneamento, além da criação de um pacote de estímulos que evitou um tombo maior da economia brasileira nesta crise e congelamento de remuneração dos servidores, mas no cômputo geral o desempenho é claudicante e até contraditório. Cria o Pix para desburocratizar e baratear serviços bancários, para logo em seguida especular sua inclusão no pacote da criticada CPMF digital. Em vez de projetos sólidos para as reformas administrativa e tributária, por exemplo, o que se viu foi uma série de anúncios picados, truncados e, pior, logo depois desmentidos. Não há ambiente para debate democrático, que costure consensos em torno de pautas urgentes, em meio a tantas inconsistências.
No cenário internacional, o mesmo poder para queimar pontes tem causado estragos e isolado ainda mais o Brasil de potenciais parceiros. O discurso belicista e ideológico de Bolsonaro, pouco afeito ao diálogo, já custou a suspensão de recursos repassados por Alemanha e Noruega ao Fundo Amazônia, já fez água no acordo com a União Europeia devido a indisposições com a França e agora ameaça um ostracismo maior nos palcos multilaterais com a entrada de Joe Biden na Casa Branca. Por trás de cada uma dessas decisões, os vários tons do negacionismo típico do atual governo. Nem uma gota de estratégia.
A atual gestão não precisa de inimigos. Apesar de ser pródigo em apontá-los ou mesmo fabricá-los, o governo federal encontra resistências em seu próprio seio, na Torre de Babel que construiu. As alas técnica e ideológica não falam a mesma língua, enquanto o séquito militar vive de tentar agradar o rei. E Bolsonaro é como o monarca pintado pelo político francês Adolphe Tiers: reina, mas não governa. Mesmo sem planos, a não ser meros esboços, o Planalto fala em recuperação em V. A falta de comando pode derrubar mais essa promessa do governo, e a morosidade cobrará um preço ainda mais caro ao país, que agora corre contra o relógio para fazer caixa e evitar o estouro da dívida pública, que deve ultrapassar 100% do PIB. A possibilidade de que o país conviva por longo meses com o novo coronavírus deve servir de estímulo para acelerar agendas, não como desculpa para adiá-las.
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