As mortes no trânsito, no Brasil, encontram-se numa zona cinzenta entre a banalidade e a banalização. Banalidade, pelo fato de serem perdas sem sentido, que poderiam ser evitadas com mais prudência e cuidado nas vias. São vidas que desaparecem em um piscar de olhos, numa ultrapassagem indevida ou numa curva malfeita. Banalização, porque os números da violência no trânsito já não dão mais conta de causar a comoção que deveriam. Morre-se demais em acidentes, mas essas perdas já fazem parte da paisagem, em um país no qual punições mais rigorosas na legislação de trânsito ainda são encaradas como mero abuso do poder público por uma uma parcela de condutores que almejam um passe livre para as infrações.
O ano de 2020 foi marcado pela pandemia, e o foco nas mortes provocadas pela Covid-19 foi inevitável. Somente no Espírito Santo, 5.234 pessoas morreram em decorrência da doença entre os dias 16 de março, data do primeiro óbito registrado no Estado, e 31 de dezembro do ano passado.
Com as medidas de restrição levadas mais a sério principalmente no primeiro semestre, e consequentemente menos pessoas circulando nas ruas, houve uma redução nas mortes no trânsito no Estado: se em 2019 foram 806 óbitos, em 2020 esse número caiu para 741. Entre o mero achismo e a estatística séria, não é leviandade dizer que, se não houvesse a crise sanitária em 2020, esse número provavelmente superaria o do ano anterior.
E, mesmo com a redução, foram estatisticamente duas mortes por dia em acidentes envolvendo motoristas, passageiros, pedestres e motociclistas em todo o Espírito Santo. A barbárie nas ruas, avenidas e estradas não deu trégua, sendo que o mês de dezembro foi o mais mortal do ano, com 90 registros, de acordo com dados do Observatório da Segurança Pública do Espírito Santo. Há informações que permitem traçar o perfil dessas mortes: 87% das vítimas eram homens. As colisões frontais corresponderam a 37,1% dos acidentes com vítimas fatais.
Considerados os mais vulneráveis no trânsito, motociclistas e pedestres foram as vítimas em 47,1% e 15,8% dos registros de morte em 2020, respectivamente. E quando se aponta a imprudência como o principal componente dessa calamidade cotidiana, um destaque é o excesso de velocidade, a pressa que não leva a lugar nenhum e muitas vezes termina em tragédia.
Mas nenhum dos personagens que fazem parte dessa cadeia escapa das responsabilidades. O desrespeito à legislação não cabe apenas a motoristas e motociclistas: pedestres e ciclistas também ignoram regras fundamentais nas ruas em nome da pressa e da impaciência. O trânsito só é tão caótico e disfuncional porque todos querem impor suas prioridades.
E também há imprudência por parte de condutores em outras situações, como a negligência com a manutenção do veículo e a direção não adequada à via. O consumo de álcool é outra exposição ao perigo. A Semana de Segurança no Trânsito, em setembro do ano passado, trouxe um slogan pertinente: "Perceba o risco, proteja a vida”. Algo tão simples, mas ao mesmo tempo tão difícil de se tornar rotina.
Não é por pouco que as punições precisam ser severas. No ano passado, alterações no Código de Trânsito Brasileiro colocaram em risco a efetividade da lei, mas a atuação do Congresso conseguiu reduzir os danos. Em uma das emendas, fixou-se a proibição da substituição da pena de reclusão por penas alternativas no caso de morte ou lesão corporal provocada por motorista embriagado ou sob efeito de drogas.
Se a segurança no trânsito se baseia no tripé "vias, veículos e fator humano", sabe-se que o terceiro elemento é responsável por 90% dos acidentes em todo o mundo e, portanto, vai se sobrepor aos demais. É a atitude do motorista ao volante que vai garantir a própria segurança e a de terceiros, por exemplo, em uma rodovia danificada e mal sinalizada. E de forma alguma essa preponderância exime o poder público ou as concessionárias de garantirem a manutenção das vias, para que não se tornem caminhos da morte.
Quando se fala da tão ansiada humanização no trânsito, coloca-se em perspectiva justamente o incontestável fato de que, por trás das máquinas que circulam nas ruas, há pessoas. Malconduzidas, elas se tornam máquinas de matar. Acidentes acontecem, muitas vezes são mesmo inevitáveis, o ser humano não é infalível. Mas, com mais cautela e responsabilidade, esse mesmo ser humano pode ter mais controle sobre a própria vida e a dos outros.
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