Famílias de alta renda pedem auxílio, e assim o Brasil não vai para frente

Oportunismo desse nível quando o país atravessa a pior crise das últimas gerações é pura desumanidade, um tiro de misericórdia na nossa capacidade de se reerguer como nação

Publicado em 04/06/2020 às 06h00
Atualizado em 04/06/2020 às 08h15
Data: 08/02/2018 - Pagamento - Dinheiro - Notas de cem reais - Editoria: Economia - Foto: - GZ
Até o momento, 57,9 milhões de pessoas foram beneficiadas com o auxílio. Crédito: Arquivo/A Gazeta

O país mais uma vez escancara seus contrastes e sua capacidade de atualizar o jeitinho brasileiro. Com a multiplicidade de cadastros nacionais e a complexidade de realizar o cruzamento de dados, ficou patente a dificuldade do governo federal em fazer o auxílio emergencial chegar a quem precisa nesta pandemia.

Mas ao mesmo tempo que essa invisibilidade social tem sido marcante, outros mais privilegiados conseguiram marcar presença com seu oportunismo, mesmo sem estar entre aqueles que têm direito aos R$ 600. É o que fica constatado com o resultado de uma pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, publicada pelo Valor Econômico, que mostra que um terço das famílias de classe A e B no país solicitou o auxílio indevidamente.

E 69% das que tentaram acabaram aprovadas, colocando no bolso um dinheiro destinado a trabalhadores informais, microempreendedores individuais e desempregados, com a necessidade de comprovação de uma renda per capita de R$ 522,50 mensais ou renda familiar de até R$ 3.135, o equivalente a três salários mínimos. Muita gente que, mesmo se encaixando nos requisitos, ainda encontra obstáculos para a aprovação.

Para burlar a regra, bastou a omissão dos valores reais no momento do cadastro no site da Caixa. Assim, membros de famílias mais abastadas, como esposas e filhos adultos, conseguiram ter acesso ao valor. São pessoas que também enfrentam a crise econômica com redução ou perda de renda e adaptação do orçamento familiar à realidade imposta pela pandemia, o que não justifica a participação no programa emergencial com público-alvo bem definido.

O calo aperta de forma diferente para essas famílias: a própria pesquisa mostra que apenas 2% das classes A e B relataram dificuldades para comprar alimentos e 3% para a aquisição de produtos de higiene. A abordagem revela que 20% dessas camadas com maior poder aquisitivo da população deixaram de pagar alguma conta com a crise sanitária. Os percentuais mostram que há dificuldades, mas não vulnerabilidade.  O que faz toda a diferença no que diz respeito à participação do Estado nesse amparo.

Até o momento, 57,9 milhões de pessoas foram beneficiadas, sendo que desse total  19,2 milhões estão no Bolsa Família e 10,5 milhões no Cadastro Único. Incluindo a primeira e a segunda parcela do auxílio, foram  creditados R$ 74,6 bilhões. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que cerca de 6 milhões de pessoas podem estar recebendo o auxílio indevidamente, enquanto 3 milhões de brasileiros podem ter sido excluídos:  é o número de brasileiros que não têm acesso à internet ou que não sabem ler.

A incapacidade governamental de cruzar os dados é a origem do problema. A inclusão das bases de dados da Receita Federal foi colocada com imprescindível para a precisão das informações para assegurar que pessoas com as ocupações elegíveis para o benefício, mas com renda superior ao limite estabelecido, não recebam o auxílio emergencial. 

A Controladoria-Geral da União (CGU) identificou mais de 160 mil possíveis fraudes na distribuição. Há irregularidades envolvendo proprietários de veículos que valem mais de R$ 60 mil, donos de embarcações e doadores de mais de R$ 10 mil nas últimas eleições.  Até mesmo brasileiros em situação ilegal no exterior estão entre os casos de recebimento indevido.

O benefício não pode ser demonizado por causa dessa ação fraudulenta de quem acredita não estar fazendo nada de errado. Não se embolsa dinheiro público porque ele está disponível, muitos dos que cometem a fraude se veem como justiceiros, por pagarem impostos a vida inteira sem ter as contrapartidas. Estão errados, estão cometendo crimes.

A declaração de informações falsas para  solicitar e receber o auxílio emergencial pode se enquadrar como crimes de falsidade ideológica e estelionato. Igualam o dito cidadão de bem a qualquer criminoso de colarinho branco.

Oportunismo desse nível quando o país atravessa a pior crise das últimas gerações é pura desumanidade, um tiro de misericórdia na nossa capacidade de se reerguer como nação. Não há justificativa, é o nível mais baixo a que se pode chegar. Enquanto houver quem queira se dar bem em cima da tragédia alheia, não será possível sair da lama.

O auxílio emergencial continua sendo imprescindível neste momento, uma forma de amenizar a pobreza. As fraudes eram esperadas, mas a urgência de quem tem fome falou mais alto, com razão. A partir de agora,  um pente-fino nos cadastros também passa a ser uma lamentável prioridade. O Brasil só se enfraquece com tanta malandragem.

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